Angélica Torres -
Na manhã em que morreu o pequeno Arthur Lula da Silva, ao imaginar lágrimas escorrendo pelo rosto do avô, sozinho no cárcere, me veio à memória outra cena, esta real, ocorrida em 1986, e outro líquido de natureza igualmente tão humana, também inundando a face do então líder sindicalista, cena que me marcou profundamente quando o conheci e o entrevistei, por iniciativa própria, fora da pauta de reportagem, por pura curiosidade.
O país acabava de entrar em plena era de renascimento. Três repórteres da grande mídia, uma de um jornal local e eu pela Voz do Brasil fazíamos então a cobertura do Ministério da Reforma Agrária (MRA). Tínhamos viajado no dia anterior, num avião bimotor, acompanhando os ministros Dante de Oliveira (Reforma Agrária), Paulo Brossard (Justiça) e o delegado Romeu Tuma, da Polícia Federal, em visita ao Bico do Papagaio, área de sangrentos conflitos agrários.
As três autoridades tinham ido conversar com as lideranças de posseiros, grileiros e fazendeiros dos três estados de confluência da região – Goiás (hoje Tocantins), Maranhão e Pará –, sobre a situação de violência em que se achavam há mais de uma década, a fim de vislumbrarem a possibilidade de uma solução para o quadro de tamanha complexidade.
O calor abafado era infernal em toda a área. Suávamos em bicas, exceto Brossard. Em seu terno cinza impecável, sob seu indefectível chapéu Panamá, o homem mantinha a pele alva levemente rosada e sem uma gota sequer de suor marejando no rosto, enquanto nos dava seus depoimentos ao final de cada uma das três tórridas cidades visitadas. Aquilo me deixou muito intrigada.
Voltamos de noite para Brasília com bastante material para escrever nossas matérias. No dia seguinte, antes de ir para a redação da Voz e depois para o ministério, não resistindo à curiosidade, passei por conta própria na Praça 21 de Abril, da Asa Sul do Plano Piloto, onde eu soube que Lula, candidato a deputado constituinte por São Paulo, faria um comício.
Não me lembro mais qual era o tema exato do comício, mas a cena inteira é inesquecível. Lula descia sozinho pela escada de um palanque improvisado, no momento em que cheguei à Praça; tinha acabado de discursar. Havia uma grande clareira em volta do palanque e nenhum repórter na disputa por entrevistá-lo. Jovem, em início de carreira, ainda tímida, mas corajosa na pele de repórter – ossos do ofício... – pensei rápido: vou fazer a ele uma pergunta sobre reforma agrária. Sicolácolô. Se não, ao menos conheci o famoso Lula de perto. E fui ao seu encontro.
Também não lembro qual foi a pergunta que fiz. Ao vê-lo ali tão próximo, o suor lhe escorrendo por todo o rosto, a camiseta molhada pelo esforço do discurso, feito sob o sol da cáustica seca brasiliense de 1 hora e pouco da tarde, lembrei-me imediatamente do ministro Paulo Brossard e de sua arte de não suar, trajando terno e chapéu, em pleno calorão brabo de Imperatriz do Maranhão, mais ou menos àquela mesma hora da tarde anterior.
Senti muita vontade de comprar uma garrafinha d’água para Lula, mas não pude fazer esse gesto de boa samaritana. A imagem do ministro bem nascido, bem criado, bem estudado e encaminhado na vida, sem termos de comparação com a daquele cabra extraordinário à minha frente, falando em uma língua política inusitada, com dicção, narrativa, inflexão, conteúdo, sinceridade, rouquidão, totalmente inovadores em relação aos políticos grã-finos e pasteurizados que estávamos acostumadas a entrevistar, eu e minhas colegas setoristas do MRA (Eliana Lucena, do Estadão; Marcinha Brandão, de O Globo; Rosane Garcia, da Folha de S. Paulo; e Joyce Russi, do Jornal de Brasília) – era algo assim tão novo quanto foi para os da nossa geração ouvir João Gilberto e Beatles pela primeira vez –, que, adeus, garrafinha d´água!
Foi um choque. Entrei em estado de poesia, quando se adentra por um universo paralelo e individual, cutucada pela Musa. Fiquei mirando a figura, observando aquela seriedade carismática que marcava sua expressão facial de líder de massas, a barba cerrada e o farto cabelo muito negros – que me evocaram o verso do poeta cubano Nicolás Guillén, no poema “Che Comandante”: “rosto de barbas que clareiam/ marfim e azeitona em pele de santo jovem/ firme voz que ordena sem mandar/ que manda companheira/ ordena amiga/ terna e dura de chefe camarada!” – e agora sobrepondo essa imagem rude e verdadeira à do ministro da Justiça.
Naquele momento, percebi que algo surpreendente estava mesmo nascendo no Brasil que acabava de se libertar da ditadura militar, e todos podendo testemunhar, formar ideia e opinião, participar, cada qual com seu juízo, amplo ou limitado, leviano ou responsável, da prerrogativa cidadã.
Os que acompanharam com atenção e sensibilidade a trajetória de Lula não são de se perturbar com críticas e ironias de adversários, e até mesmo de amigos, a uma admiração que taxam de “exagerada”. Alguns se comprazem em alfinetar, citando, por exemplo, a célebre frase de Brecht, da peça A Vida de Galileu: “Infeliz da nação que precisa de heróis”.
Pois, tomo a liberdade de interpretá-la sob outro ângulo: este, que não rebaixa o herói em si, mas os que desrespeitam e aviltam o país e seu povo, como golpistas lesas-pátrias, fascistas torturadores e moleques psicopatas, tornando a figura de um herói, como Luiz Inácio Lula da Silva, necessária como parâmetro e antídoto, ao seu povo.
O tempo está se encarregando de mostrar mais coisas que muitos não conseguiam discernir. Hoje, na pureza de seu próprio sacrifício, uma criança de apenas sete anos vividos faz o papel desse fio condutor ao avô, iluminando-o, para os de fora divisarem melhor o processo familiar de tantos outros sacrifícios, suores e lágrimas. Às suas e às de sua família juntamos as nossas lágrimas e o nosso mais solidário apoio, Presidente Lula.