Maria Lúcia Verdi –
É um desafio escrever sobre a mostra “A reforma do olhar possível”, do mestre Luís Humberto, atualmente em exibição no Museu Nacional da República, em Brasília. Proposta e apresentada com competência pelos fotógrafos Rinaldo Morelli e Usha Velasco, a mostra é um poema de cores e luzes sobre o espaço do cotidiano do fotógrafo. Fotos que são pinturas.
Ao refletir sobre a capacidade da fotografia de contar histórias, sugerir narrativas possíveis, diz Rinaldo, no belo catálogo da mostra: “Luís Humberto, nestas fotografias, conta um pouco de sua história recente. Supera-se diante dos novos desafios, compreendendo os limites como propostas de novas possibilidades”.
A história que as fotografias expostas contam é a do cenário em que se insere alguém, um sujeito, que enfrentou o desafio da doença e o fez com garbo. Este sujeito não se sujeita à limitação física, seu refinado olhar e sensibilidade estão muito além dela. É um sujeito pleno, que aponta para a luz, para o recorte, para a lucidez, para a salvação pela arte.
Ícone da fotografia brasiliense, professor emérito da UnB Luiz Humberto é lembrado por Usha Velasco, em seu texto, como o professor que exigia que os alunos dissessem “coisas”, não se calassem frente às imagens. “Ele nos ajudou a construir ferramentas para pensar”. A fotógrafa recorda o jovem arquiteto Luís Humberto e seu compromisso com a democracia ao demitir-se da UnB em 1965; o seu peculiar olhar de fotojornalista, e sintetiza uma vida de entrega à fotografia e de notório reconhecimento pela sociedade.
Amo o minimalismo, a luz e suas propostas, as geometrias banais do cotidiano. O poema visual composto por Luís Humberto tem alguns eixos: a homenagem ao olhar – muitas fotos dedicadas aos pares de óculos da casa, companheiros da leitura, da escrita, da fotografia possível; à luz que transforma as coisas e produz epifanias; aos objetos triviais que nos acompanham.
Abre o catálogo foto de um trinco de porta e das sombras projetadas nela e na parede detrás. Entramos respeitosamente no espaço do casal Luís Humberto e Márcia. Ele nos revela a suavidade do olhar, a justeza dos recortes que a visão filosófica do artista (como adiantou Celso Araújo) executa, no espaço de convivência da família. As cores, os detalhes nos lembram pequenos Koans orientais onde histórias são contadas ou perguntas são feitas sem que haja respostas a não ser a da própria letra dos textos - como nas fotografias do “olhar possível”.
A intimidade de alguém que vive com uma limitação é revelada na sua negação do limite. O que vemos é a perfeita sintonia com a Beleza, com a transcendência de uma realidade que pode ser dura, cansativa, repetitiva. Daí a filosofia que se depreende das fotos: a da superação, a da aceitação. Superar, sublimar, por meio da Arte, antiga lição. Nas quatro fotos de agendas, uma está vazia, duas anotadas com os compromissos que os dias trazem e uma que expõe, manuscrita, a palavra: sobrevivência.
Na foto da biblioteca, colocada, no catálogo, logo após a foto recém mencionada, conseguimos identificar os títulos de alguns poucos volumes: À Sombra das Raparigas em Flor, do “Em busca do Tempo Perdido”, de Proust; Uivo\Howl, de Allan Ginsberg; O Apanhador no Campo de Centeio, de J. Salinger; um volume que sei ser de Guimarâes mas não reconheço qual seja, minha edição é outra; e, o que chama o olhar do leitor que o leu – A Cerimônia do Adeus, de Simone de Beauvoir.
Nada precisa ser explicado. A máquina fotográfica é apenas o instrumento para, como disse Usha, provocar pensamento e êxtase. Numa tarde os vi de relance, Luís Humberto e Márcia, num shopping, num desses que uma das fotografias registra a partir de um ângulo e um reflexo provocadores. Eles dialogaram com meus pensamentos e inquietudes. Aqui, o poema:
Meio do dia
O anjo sem asas sobre a geladeira
A montanha - dois chapéus asiáticos
Na pintura de Pedro Alvim um pátio,
um canto de casa carro, mangueira
(observo Preta em seu espaço
a qualquer hora ela morre
quase quatorze anos é muito
surda e sem faro a vida custa)
Meio da tarde, corredor de shopping
de esguelha vejo o artista
- a dignidade em cadeira de rodas
A vida resiste mesmo quando cansa
Segue-o a mulher, a musa agora outra
(onde o mesmo?)
Abro o livro, a musa na plenitude de mãe
o sorriso abre, abre abre
(numa dessas noites olharei para o tapete
a forma estará imóvel)
Meio da noite
Tudo silenciado menos a geladeira
O som das necessidades
a manutenção dos corpos
(Preta bebe água com sofreguidão
talvez tenha mais tempo, me digo
E para quê mais? pergunta-me desde dentro
a que se esforça
por beber água)
PS: Agradeço a Luís Humberto por me dar uma lição: beber água não deve ser um esforço.
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Serviço:
Exposição: A reforma do olhar possível (Fotografias de Luis Humberto)
Visitação até o dia 6 de janeiro de 2019, das 9h às 18h30.
Local: Museu Nacional da República – Esplanada dos Ministérios – Brasília – DF
Entrada franca.