Maria Lúcia Verdi -
"Sem Plano Nem Piloto - título da mostra de Luiz Jungmann Girafa, em exposição no Museu Nacional da República, em Brasília, até 5 de janeiro, explicita diretamente suas principais vertentes: crítica irônica à Brasília de hoje e bem humorada autocrítica do artista.
Arquiteto de formação, fotógrafo, diretor dos ótimos curta metragens "Eu não sei" e "Diário vigiado", além de pintor, Girafa é um incansável caminhante que observa e registra atentamente, há décadas, os movimentos nos espaços de nossa peculiar capital.
Brasília, nascida do idealismo de seus criadores, está deturpada pela avidez imobiliária, as necessidades da população e o mau gosto. Cidades planejadas são naturalmente modificadas pelo homem, adaptadas às mudanças históricas. O Plano, alcunha pela qual os brasilienses se referem à cidade, está há muito sem piloto à altura de suas complexidades.
O artista, por seu lado, reconhece-se cheio de ideias, mas sem plano, o que testemunhei ao colaborador em seu atual projeto, o longa-metragem Enigma, em etapa de finalização. Filmado com atores e músicos de Brasília, totalmente experimental, compõe uma rica metáfora da cidade e suas questões contemporâneas. A, para nós, mitológica W3 se transforma no filme na estrada da vida, o antológico céu brasiliense nunca sendo mostrado. Girafa não tem um piloto, tem muitos, e eles o dirigem em múltiplas direções. Apresenta-se no Facebook com a frase: “não tenho emprego, tenho uso”.
Os títulos dos setores, das áreas em que é dividida a mostra - como é dividida a cidade - apontam para outra das paixões do pintor: a linguagem, a poesia, pela qual também se manifesta. Títulos criativos, brincalhões, que revelam o olhar agudo sobre o entorno e as circunstâncias políticas, sociais e emocionais que o configuram e desfiguram. Alguns títulos que anotei: Ente asas; Setor de ruínas; Paisagem para um quarto; Eixo desentendido; Entrega de estrofes; Quatro sonhos que se cruzam; Setor de Palavaras da Ordem Norte, Sul, Leste; Zona morta para pessoas vivas; Cibenética ou faraônica.
"Sem Plano Nem Piloto" é um manifesto poético-político de forte intensidade visual. As várias brasílias são recriadas a partir de outras (e as originais) geometrias em fragmentos que revelam a mirada do arquiteto-fotógrafo comprometido com seu país. Mas como diz o curador Renato Cunha, Girafa, filho desencantado do sonho utópico que foi Brasília, não consegue deixar de voltar a encantar-se pelos espaços, pela natureza e o céu do cerrado que nos acolhe e nós maltratamos.
A vida em blocos, a bela e ordenada monotonia da estética brasiliense esconde belezas inesperadas que o olhar do artista, ao mesmo tempo analítico e sonhador, isola e revela. Detalhes, traços, manchas, detalhes do humano que ele fotografa ou reconfigura na pintura. Figuras humanas geometrizadas, recortes de um quebra-cabeças que compõe um universo ao mesmo tempo subjetivo e coletivo. Os títulos agregam significado às narrativas visuais.
A instalação Eixe-o ou deixe-o, em clara alusão ao emblemático Ame-o ou deixe-o, de tempos que esperemos não retornem, merece comentário à parte. É um imperativo que vem de um o\Outro sem identificação: proporá um retorno à pureza da lógica que construiu a cidade?
Na sala escura, fotografias em branco e preto de detalhes da arquitetura e da população: os sem teto e os raros pedestres desta cidade paradoxalmente antiga – aqui temos quatro rodas. Tão antiga como a moldura retangular que no chão delimita um bocado de terra vermelha, a do “quadrado” ou Distrito Federal. No canto superior dessa montagem onde a pintura é apenas a terra, um marco de ferro que remete ao marco da primeira cruz colocada no planalto eleito para a nova capital. Mas não é uma cruz. Nas paredes, as fotos sem cor têm, à direita e à esquerda, desenhados por jovens artistas voluntários,sob a orientação do autor, fios unidos a formar uma “coisa”, figura que lembra um cordão umbilical, uma parte do intestino, o fluxo do significante.
O Museu Nacional República, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, nos presenteia com duas mostras importantes e totalmente diversas de dois artistas da cidade: Luís Humberto e Luiz Jungmann Girafa. Visitem-nas com todos os sentidos alertas.