"A vida é de quem se atreve a viver".


No poema “O Lance de Dados” Mallarmé termina com uma possibilidade de “renascimento” que é vista no céu: “Todo pensamento emite um lance de dados”. O fundamental é a resistência...
Os simbolistas queriam outra coisa: IV Mallarmé

Maria Lúcia Verdi –

Mallarmé queria o impossível e dele se aproximou como poucos na literatura universal. Seu impossível é a Obra Total (“Le livre”/O Livro”) que refletiria o Absoluto em sua dispersão, em suas mil leituras possíveis.

Stéphane Mallarmé (nascido Étienne - Paris 18/3/1842-9/9/1898 - influenciou toda a literatura do século XX a partir, sobretudo, de um texto que, por meio de elipses, usos de diferentes tipos e tamanhos de letras e do branco da página, cria uma outra lógica para a poesia, para a escritura - “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”, poema que inaugura poética nova, absolutamente antidiscursiva ou minimamente mimética.

Como num espelho frente a um espelho, sua produção se reflete entre si, os símbolos, os elementos principais dialogando, entrelaçando-se, aprofundando-se num turbilhão de sons e imagens que evocam a realidade de modo crescentemente hermético e abstrato. A preocupação com o significado sendo menor do que o amor ao significante - o som, que evoca e transcende.

Como apontaram os críticos, é o poeta do Nada, do Talvez e do Então:

SALUT\BRINDE

(tradução José Lino Grünewald)

Nada, esta espuma, virgem verso

Apenas denotando a taça;

[...]

Solitude, recife, estrela,

A não importa o que valer

O alvo desvelo em nossa vela.

Enfrentou a perda da mãe aos sete anos, da irmã e do filho de oito anos vivenciando, assim, reiteradamente, aquilo que é algo que o Eu não quer, não pode saber o que é, segundo a psicanálise. O poema inconcluso para o filho Anatole é um dos tantos dedicados aos Túmulos de seus mortos, Edgar Allan Poe, Baudelaire, Verlaine, Théophile Gautier.

PARA UM TÚMULO DE ANATOLE 

filho saído de

nós dois – nos

mostrando nosso

ideal, o caminho

- nosso! Pai

e mãe que a ele

     em triste existência

sobrevivemos como –

os dois extremos

[...]

vela

     navega

      rio,

tua vida que

passa, flui

[...]

Resistiu às perdas concretas e aos fantasmas interiores que o levaram aos infernos relatados em seu conto “Igitur ou a loucura de Elbehnon”, com o qual ele pretendia vencer a “impotência”. Já em Igitur a presença do lance de dados, do futuro Um Lance.

Sobreviveu graças à entrega completa, sistemática, à literatura aliada ao sacrifício tranquilizador de uma vida burguesa, em família. Aos vinte e um anos, casado, precisou sobreviver como professor de inglês em três monótonas cidades do interior da França, onde vivia em absoluto isolamento intelectual. Mente brilhante e terrivelmente sensível, o Tédio (para usar as maiúsculas que ele apreciava) o dilacerava.

BRISA MARINHA

(tradução Augusto de Campos)

A carne é triste e eu li todos os livros

[...]

Um Tédio, desolado por cruéis silêncios,

Ainda crê no derradeiro adeus dos lenços!

E é possível que os mastros, entre as ondas más,

Rompam-se ao vento sobre os náufragos, sem mas-

Tros, sem mastros, nem ilhas férteis, a vogar...

Mas ó meu peito, ouve a canção que vem do mar!

Em meio à platitude entorno começa a escrever uma de suas obras primas inacabadas, Hérodiade. A heroína deste poema, inicialmente pensado para ser uma tragédia a ser encenada, não é a Hérodiade bíblica, mãe de Salomé, mas sim Salomé, uma jovem que defende sua virgindade com a obsessão que nasce da incapacidade de amar e entregar-se. Simboliza a impossibilidade da entrega absoluta à literatura.

Mallarmé conviveu com este texto até o fim de sua vida, dele tendo realizado apenas três “cenas”. A impossibilidade é um dos conceitos chave para se aproximar da obra deste poeta. A escolha do nome Hérodiade tem a ver com a pura beleza do som deste nome que para o poeta é como uma romã, rubro em seu interior. Para os Simbolistas, o som tem tanta importância quanto o significado, o som é ritmo, música e a Música é o objetivo maior.

Uma das questões centrais para Mallarmé é a se sabemos o que é escrever. Questão que o persegue, quase o alucina, que se expressa na criação de uma linguagem que é, até hoje, um desafio para os leitores. A poesia, para ele, se inicia com a questão da linguagem, da etimologia, da busca da forma pura do dizer em uma sintaxe nova, completamente distante de conhecida clareza da expressão francesa. As analogias tem papel fundamental, elas são o instrumento para as evocações não descritivas dos objetos e dos sentimentos.

Mallarmé era apaixonado pela Linguagem – aquela que é o objeto observado e ao mesmo tempo o objeto da observação –; amava os dicionários, chegou mesmo a pensar em escrever sobre a origem das línguas, munindo-se de uma biblioteca sobre o assunto.

Leitor dos poetas românticos (sobretudo Victor Hugo e Musset), fascinado por Viliers d’Ille Adams (autor de “Axel”), Edgar Allan Poe e por Baudelaire, sua primeira poesia - ainda dialogando no molde da perfeição parnasiana – vem a ser um paradigma da perfeição simbolista, da qual se afasta aos poucos, conforme vai criando sua própria linguagem. Linguagem que deseja falar não da coisa em si, mas da sensação que ela provoca, afastando-se de qualquer descrição concreta com o auxílio do que ele chamou de “o demônio da analogia”. Buscar na poesia o onírico, transformar a realidade a partir de uma percepção que se autonomeia como a de um fantasma, de um morto. Mostrar, portanto, a realidade transfigurada, espectral, através de um canto, de uma “língua suprema” que reflita o Nada, a Ausência como realidade maior: “[...] a flor, a ausente de todos os buquês.”

A partir desse conhecimento profundo do Nada Mallarmé descobriu a inexistência de Deus: “A grandeza do homem é ter imaginado o absoluto.” A realidade, para ele, é e permanecerá impenetrável à compreensão humana, puro mistério. Acreditava que os poetas tinham por missão louvar as Gloriosas Mentiras (como a existência de Deus), além de oferecer uma “explicação órfica do mundo, o único dever do poeta”. As Gloriosas Mentiras seria uma das partes de “O Livro”.

Alguns críticos creem que a leitura de Descartes e de Hegel o auxiliaram a sair do Nada em que havia mergulhado até 1860, outros colocam em dúvida tais leituras. De todo modo, a questão colocada entre o indivíduo que escreve e o sujeito, o Eu que fala no poema, na literatura, é central em Mallarmé.  Todas as vozes são máscaras do Poeta: a reedição de Hamlet na mesma encarnação da dúvida, sua referência maior; o bufão; o Mestre (Comandante) herói frente os naufrágios; um ser mitológico com o Fauno, do “A tarde de um Fauno” - e Mallarmé afirma: “Sim, eu fui fiel a mim mesmo” e mesmo Hérodiade. Quanto ele merecia ter visto Nijinsky dançar seu Fauno, em 1912, que inspirou o poema-sinfônico de Debussy!

A tarde de um Fauno

(tradução de Décio Pignatari)

[...] É o rodopio de carnes, que ele gira no ar
É a sua carnação, que ela gira no ar
Seu ligeiro encarnado a voltear no ar
Entorpecido de pesados sonos.

                                                 Sonho?
Sonolento de sonhos e arbustos.
                                                 Foi sonho?
Espesso de mormaço e sonos
[...]

Curiosamente, ao voltar a Paris, aos 29 anos, Mallarmé publica oito números do jornal “A última moda”, onde escreve sobre decoração, culinária e moda e responde cartas das leitoras.

Em suas palavras é: “Com o nada se esconderia o nada”; podemos lembrar de Clarice Lispector, autora de obra também radical e misteriosa que, como ele, escrevia em revistas femininas com distintos pseudônimos para aumentar seus rendimentos.

Em 1872, ainda desconhecido, inicia as (que virão a ser legendárias) reuniões literárias das terças-feiras, em seu apartamento da rua de Roma - um grupo de amigos que misturava a Cabala com o Budismo e o pensamento de Hegel. Somente em 1884, publicado por Verlaine em “Os poetas malditos” e mencionado no romance “À rebours”, de Huysmans, começa a ser um nome na literatura da época.

Buscar a expressão pura da ideia, de uma palavra, um conceito, além de toda e qualquer representação o levou ao sonho da obra maior: “O Livro”, a ser composto por textos de distintos gêneros, em páginas soltas (para permitir infinitas leituras), como uma (inimaginável) construção arquitetônica, e do qual Heródiade e Igitur fariam parte.

Dele restaram 220 páginas com anotações sobretudo relativas ao cenário, mobiliário e ao detalhadíssimo ritual em que este Livro seria lido, ritual que levaria cinco anos de escuta para ser completado. Em sintonia com a ideia de Wagner sobre a Arte Total, Mallarmé busca em vários de seus textos as possibilidades visuais e sonoras do teatro (Hérodiade, O Fauno) - o idolatra.  Sonha terminar “O Livro” que, segundo ele, existiria em algum lugar e do qual sua obra teria conseguido revelar fragmentos. O Poeta como o visionário de que Rimbaud falara.

O “Lance de dados”, pensado como uma sinfonia de vozes, traduzido magnificamente por Haroldo de Campos, talvez seja a concretização possível deste Livro idealizado, que, afinal, encontrou forma na síntese absoluta de ideias lançadas, criteriosamente, no espaço branco da página, analogon do céu estrelado – “a dispersão volátil do espírito”. 

UM LANCE DE DADOS

                                      JAMAIS

MESMO QUANDO LANÇADO EM CIRCUNSTÂNCIAS

ETERNAS

                   DO FUNDO DE UM NAUFRÁGIO

[...]

                                      JAMAIS ABOLIRÁ

[...]

                                      O ACASO

 

PS – Talvez seja insensato associar este poema ao momento presente, mas me atreverei. Não terminaremos de entender todos os fatores que fizeram com que a candidatura de alguém sem qualquer qualificação fosse levada a sério em nosso país. Talvez só mesmo por ser o Brasil, este mistério surreal até hoje sem solução.

O Lance de Dados se passa num naufrágio, um comandante envelhecido tenta vencer a força das águas - há o Acaso, e ele lança os dados na esperança de que algum sinal encorajador. O poema termina com uma possibilidade de “renascimento” que é vista no céu, nas sete estrelas do Septuor que apontam para o Infinito, de lá vem a mensagem do verso final:

Todo pensamento emite um lance de dados”. Todo pensamento, portanto, é uma abertura para as possibilidades, para os jogos do Acaso. O fundamental é a resistência do pensamento, a resistência da criação.

 

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