"A vida é de quem se atreve a viver".


Os simbolistas queriam outra coisa: III Rimbaud

Maria Lúcia Verdi –

O que movia a escritura de Rimbaud? Qual desejo teria sido o mais potente? Fama? Amor? Dinheiro? Em um trecho icônico ele diz: “Il faut être absolument moderne” (Sejamos absolutamente modernos). Em seu tempo (1854-1891), o que este peculiar poeta francês propunha, com tal afirmação, tem a ver com a quebra dos tabus estéticos, linguísticos e morais. A partir dele o verso, a prosa e o verso livre são outros, o conceito de liberdade é outro. A aventura passa a ser experiência-limite, chave para a percepção profunda da vida.

Ser absolutamente moderno, portanto, significaria ser um outsider, anarquista nas artes e na vida. Hoje, o conceito está muito ampliado com as mudanças de paradigmas comportamentais e as transformações trazidas pela sociedade do consumo e do espetáculo, sociedade que homogeneíza sem estimular o pensamento crítico independente.

A literatura de Rimbaud – sobretudo seus “Uma estação no inferno” (1873), “Iluminações” (1872\1874?) e o poema “O barco bêbado” (1871) - marcaram todo o século XX: de Picasso, Nabokov e Henry Miller a compositores contemporâneos como Patty Smith, Bob Dylan, Van Morrison, Serge Gainsbourg, e Jim Morrison, entre tantos outros, incluídos os nossos Leminski, Raul Seixas e os Tropicalistas.

Poemas seus foram musicados; filmes, peças de teatro, performances e instalações foram produzidos a partir de uma frase, um verso ou um episódio de sua vida. A todos atraíram a revolta, a inquietude, a franqueza com que o jovem autor expõe seus fantasmas e pensamentos. Com haxixe e absinto, ou sem eles, dependendo do momento, Rimbaud viajava.

O barco bêbado”, tradução de Augusto de Campos:

“Sim, chorar eu chorei! São mornas as Auroras!

Toda a lua é cruel e todo sol, engano:

O amargo amor opiou de ócios minhas horas.

Ah! Que esta quilha rompa! Ah! que me engula o oceano!

 

Da Europa a água que eu quero é só o charco

Negro e gelado onde, ao crepúsculo violeta,

Um menino tristonho arremesse o seu barco

Trêmulo como a asa de uma borboleta”.

A imagem do jovem andarilho que escapa continuamente da domesticidade tediosa da natal Charleville; do fugitivo que se desloca a pé de um país a outro na Europa, fugindo da família e da platitude burguesa; do anti-monarquista engajado; do viajante atraído por regiões inóspitas e perigosas - tudo isso fez e faz com que Rimbaud seja um ícone do não-conformismo.

Escreveu entre seus 15 e 19 anos uma obra que é referência até hoje. De família religiosa, filho de mãe exigente e autoritária e pai ausente, a pressão para que seguisse a religião foi substituída pela que fizesse fortuna. “Eu sou escravo de meu batismo [...] O inferno não pode atacar os pagãos”. Se em “Confidências de um seminarista” diz ter sido “nascido para o amor e a para a fé”, com a idade isto vem a mudar.

A busca pelo ditame materno: “sucesso material”, o levou a trabalhar duro com exportação de café, venda de armas e comércio diversificado e sobreviver em Chipre, Somália, Galla, Egito, Harar e Aden, até mesmo como mercenário. Sua saúde se ressentiu seriamente com as condições do clima, do trabalho e do absoluto isolamento intelectual.

Sonhava ser rico sem trabalhar - poder dedicar-se apenas ao desregramento dos sentidos e à consequente poesia - mas trabalhou duro a vida adulta toda, tendo abandonado, aos vinte anos, sem explicações sua vocação poética. Expatriado, dedicado a fazer fortuna, vive, até sua morte, sem comprar obras literárias, apenas tratados científicos e manuais técnicos que o auxiliavam no trabalho. Solidão, tédio, e a angustiante impossibilidade de voltar ao seu país sem ter resolvido a questão econômica; mas também vivências incríveis na Europa e, sobretudo, na África.

Aluno brilhante, jovem culto, latinista premiado, estudioso de várias línguas, leu tudo o que havia na biblioteca de sua cidade natal, tendo sido saudado como um novo Shakespeare. Escreve poemas líricos, sociais, religiosos, eróticos. Confesso que alguns textos lembram-me desabafos dos adolescentes de hoje, confusos, perdidos entre tantas informações, facilmente manipuláveis, buscando um escapismo idealizado, sem maior objetivo do que poder obter os gadgets que acham necessários para a convivência com seus pares, o “ouro”. Rimbaud queria o ouro, foi atrás dele de um modo violento e mesmo misterioso, deixando para trás a parte iluminada de si, o poeta visionário que foi. Mas o poeta permanece nos textos.

Ao que tudo indica, Rimbaud foi abusado sexualmente no seminário quando menino. Thimothina, a jovem por quem se apaixonou perdidamente ridicularizou seus versos e não o quis. O encontro com Verlaine (então casado) foi a descida ao inferno da paixão fora da norma, mas também, felizmente, a entrega à elaboração literária dessa queda no abismo da qual resultou “Uma estadia no inferno”.  O relacionamento passional entre Rimbaud e Verlaine, – “nós fazíamos amor como tigres” - os versos e as cartas eróticas, escândalo na época, hoje são quase conservadores.

A violência desse amor - que leva Verlaine a atirar no braço esquerdo do amante quando este lhe informa que está decidido a deixá-lo - aponta para a atemporalidade das forças pulsionais. Como ainda hoje, tais tipos de descontroles continuam ocorrendo entre todos os gêneros.

O eu é um outro”, disse, e tudo depende disso: reconhecer que somos muitos, que ser humano é ser contraditório. É um grande desafio, mas não há saída para a vida em sociedades democráticas fora do respeito frente à diferença do outro, do autocontrole frente a opinião alheia. Sem armas e sem violência, defender-se com a razão, com argumentos lúcidos, com o apoio a práticas sociais que tratem a violência na base, que apostem na educação sem preconceitos e comprometida com o pensamento.

Após o tiro, Verlaine esteve dois anos preso. Segundo a opinião de muitos, este episódio foi um dos principais motivos pelos quais Rimbaud, pouco depois, abandonou a literatura.

Em “Uma estadia no inferno” lemos: “Uma tarde, sentei a Beleza nos meus joelhos. – E a julguei amarga. – E eu a injuriei”. A beleza a que se refere está com letra maiúscula, é a Beleza do cânone, do bom gosto acadêmico que rejeita. E diz ter herdado de seus ancestrais vários vícios: “a idolatria, o amor ao sacrilégio [...] cólera, luxúria” e, “sobretudo a mentira e a preguiça”. Mas buscava a pureza, considerava-se um puro: “os criminosos me desgostam como se eles fossem castrados”.

Marcado pelo cristianismo e em permanente confronto com ele, certas imagens e personagens bíblicos estão presentes em sua obra como referência, diálogo, oponentes. É irreverente, mas conhece a culpa. Quer distanciar-se do cânone, mas escreve aos líderes do Parnasianismo de sua época movido pelo desejo de se ver publicado.

“Nenhum dos sofismas da loucura – da que leva aos hospícios, - foi esquecido por mim: poderia repeti-los todos, domino o sistema.” (Alquimia do verbo, “Uma estadia no inferno”)

“Vamos em direção do Espírito. É mais-que-certo, oracular, o que ora digo. Compreendo, mas incapaz de me explicar sem palavras pagãs, preferiria emudecer. [...] Espero Deus com verdadeira gula. Sou de raça inferior por toda a eternidade.” (Sangue mau, “Uma estadia no inferno”).

As alucinações o perseguiam. O poeta deve ser “um visionário” por meio do desregramento de todos os sentidos, deve encontrar as correspondências secretas. “Quero desvelar todos os mistérios: mistérios religiosos ou naturais, morte, nascimento, futuro, passado, cosmogonia, o nada. Sou mestre em fantasmagorias.”

Define-se como “um selvagem” (e assim é definido pelos outros) e vai atrás da vida violenta, sem conforto ou proteção. E termina por “achar sagrada a desordem” do seu espírito. Finaliza “Uma estadia no inferno” dizendo: “serei livre para possuir a verdade numa alma e num corpo.”

 “Par delicatesse j´ai perdu ma vie” (Por delicadeza perdi minha vida), uma das inúmeras afirmações que problematizam a compreensão de sua obra. Delicadeza com o desejo (o ditame) da mãe? Com a família de Verlaine? Nos seus tempos de estudante, escreve: “E eu sou um grande babaca – Jesus, eu não me chuto- Mas, enfim, eu não espio os outros e não escrevo cartas anônimas, e guardo para mim mesmo a minha santa poesia e o meu pudor.”

Rimbaud preferiu deixar o conforto francês, viver entre pessoas simples, sem cultura, entre paisagens áridas onde seu silêncio ecoava. Pagou caro: adoeceu, teve uma perna a amputada e morreu aos 37 anos, em Marseille.

Buscava a sua verdade, por mais que ela fosse múltipla, perigosa, assustadora. Coerente frente às suas incoerências. “Mestre do silêncio”, como se define, desaparece, vai de fato viver o silêncio em lugares inóspitos, longe da civilização. Já havia escrito uma obra.

Sua obra terminal talvez tendo sido uma vida aventurosa que coloca em xeque qualquer classificação. Uma vida que se enfrenta com o mundo. Um mundo que hoje parece acabar-se em sua forma conhecida em todos os lugares da terra. Um mundo onde é necessário debater o conceito de fronteiras – geográficas, sexuais, amorosas, políticas, espirituais etc...- algo apontado pela obra e pela vida de Rimbaud.

Dia 8 de novembro, às 19h30, na Aliança Francesa de Brasília, ouviremos a poesia de Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé e Valéry em francês e em português. Sejam todos bem-vindos!

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“O outono. Nossa barca arvorada sobre as brumas imóveis se volta para o porto da miséria, a cidade imensa cujo céu se mancha em labareda e lodo.” (Adeus, “Uma estação no inferno”).

“A vida é farsa que todos temos de levar. [...] O mais sagaz será deixar tal continente, onde a loucura ronda a prover de reféns todos esses miseráveis.” (Sangue mau, “Uma estação no inferno”).

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