Maria Lúcia Verdi -
Neste segundo artigo sobre o quarteto simbolista de que nos ocuparemos dia 8 de novembro, na Aliança Francesa de Brasília, na quinta edição do Poesia do Mundo, comento brevemente o último deles, Paul Valéry (1871-1945), mais conhecido no Brasil pelo poema “O cemitério marinho” (1920) .
A intenção dessas matérias é introduzir o que será apresentado por Francisco Alvim, Angélica Torres Lima , Maria Maia e eu - estimular o desejo de encontro e escuta dessa poesia tão particular, que sonhava alto a poesia pela poesia.
João Cabral de Mello Neto em um dos poemas que dedicou a Paul Valéry ressalta a característica principal deste autor - a lucidez, este essencial e complexo aspecto da inteligência:
«Uma lucidez que tudo via
como se a luz ou se de dia;
e que, quando de noite, acende
detrás das pálpebras o dentre
de uma luz ardida, sem pele,
extrema e que de nada serve:
porém luz de uma tal lucidez
que mente que tudo podeis.”
Uma luz, uma lucidez, “e que de nada serve”. A poesia não tem de ser útil, embora possa sê-lo e o tenha sido em tantos momentos históricos; disso falou Valéry ao explicar o nome de seu último livro de poemas, “Charmes” (1922), escolhido por enfatizar o caráter “esotérico, mágico, não utilitário da poesia”.
Paul Valéry já foi definido como “uma mente no espelho”. Uma mente que se mostrou em sua obra, de forma emblemática, na figura mitológica do Narciso, em distintas vestes. Ocupado numa auto observação metódica, com o “rigor ostinato” de que fala Leonardo da Vinci, de quem o jovem Valéry tratou em sua primeira grande obra: “Iniciação ao método de Leonardo da Vinci” (1895).
Esta lucidez, enquanto benção e maldição, o perseguiu a vida inteira; nela, a busca pela perfeição formal, pelo conhecimento obsessivo de si por meio da anotação diária de seus pensamentos. Cinquenta anos dedicados à escritura dos Cahiers (Cadernos), 261 volumes de reflexões sobre tudo o que compõe (e descompõe) a vida. Tal lucidez deu à luz ao personagem Senhor Cabeça (Monsieur Teste), um “monstro” nas palavras do autor, puro intelecto, um dos seus alter egos.
“Monsieur Teste”, juntamente com “Eupalinos, ou arquiteto” (diálogos entre Sócrates e Fedro no mundo dos mortos) e “Meu Fausto” fazem parte da sonhada obra “Comédia Intelectual”, obra inacabada, na qual Valéry pretendia analisar “as regras do jogo” que movem o homem, seja em seu conflito existencial seja na vida em sociedade. Seria “a obra total” como a que também sonhara Mallarmé (figura central para compreender Valéry e de quem falaremos no próximo artigo) com o seu “Le Livre” (O Livro), igualmente inacabado.
“O que eu sei fazer me entedia; o que eu não sei fazer me entristece.” Valéry dizia só amar problemas, tentar dizer o indizível. Dizer o indizível a partir da máxima elaboração formal, do uso de figuras, símbolos, analogias e mitos que dissimulam o mais possível o assunto do poema, construindo uma poesia hermética, exigente. “Não cabe ao autor, mas ao outro fornecer os seus sentimentos. A finalidade de uma obra – honesta – é simples e clara: fazer pensar. Fazer pensar, a contragosto, o leitor. Provocar atos internos” (Cadernos). Tal postura ele a empregava na ensaística, na crítica, na poesia, nas crônicas, em qualquer produção literária.
Sem se engajar politicamente, mas refletindo sobre a política em “Olhares sobre o mundo atual” (1933), ele julgava com ceticismo essa arte decadente: “um mecanismo destinado a impedir que as pessoas tomem parte diretamente naquilo que lhes concerne”. O conhecido niilismo de Valéry talvez esteja relacionado a um profundo realismo desenvolvido desde cedo, à dificuldade de sobreviver como gostaria, lutando para ganhar o suficiente para manter família e alguns prazeres.
Durante os vinte anos que trabalhou no Ministério da Guerra e em uma agência de informação estudava matemática, filosofia, ciências, mitologia e psicologia. Seu sonho era compreender tudo, Descartes, além de Leonardo sendo seu modelo. O futuro membro da Academia Francesa de Letras chegou a passar por sérias dificuldades financeiras, sendo notada a avidez como comia à mesa de alguns abastados amigos. Ou quando pede ajuda para ter outro par de sapatos.
Ao fim da vida, em 1944, Valéry se dedica (encomenda que lhe rendeu um bom pagamento) à tradução – na verdade, uma transposição para o francês do latim de Virgílio – das “Bucólicas” , considerada pela crítica como um verdadeiro testamento poético. A obra é precedida por um estudo sobre Virgílio e a Arte da Tradução. Traduzir: este conceito tão amplo, é assim comentado nos Cadernos pelo poeta: “Tudo o que me é dito – tudo o que leio me aparece como devendo ser traduzido.”
Valéry deixa-se enredar radicalmente por Eros aos sessenta e seis anos, e por ele inspirado, redige o diálogo consigo mesmo que é o inacabado “Meu Fausto” (publicado postumamente em 1946), inspirado por mas bem distinto do de Goethe. Nas cartas ao objeto de seu amor, a jovem Jeanne Voilier - cujo pseudônimo literário era Jean e a quem o poeta chamou de “Meu terrível tu, meu amor” -, bem como nos poemas que dedicou a ela, Valéry é um homem comum, frágil, submetido aos poderes misteriosos do Amor. Jeanne\Jean teve inúmeros amantes, homens e mulheres, tendo se dedicado ao Direito e à editora que herdou de seu último amor, Robert Denöel e vivido até os 93 anos.
Mas o amor já havia enredado o pai de família Valéry quando, em 1920, encontrou Catherine Pozzi, beldade frágil, ao contrário da Messalina Jeanne. De Catherine Pozzi, também poeta, falaremos no dia 8 de novembro. Ao que tudo indica, Paul Valéry entregou-se mais à Jeanne do que à Catherine. Talvez pela maior complexidade da primeira, mais próxima às figuras mitológicas que ele tanto utilizou em sua grande poesia, da qual “La Jeune Parque\A Jovem Parca” (1912).
A Jovem Parca é a luta entre a razão e a sensibilidade (a sensualidade), ente o desejo de pureza e o apelo à carne, também ela outro alter ego do poeta. Trecho da tradução de Augusto de Campos da Jeune Parque será lido na noite dedicada a esses simbolistas que queriam outra coisa, outras coisas, e delas falaremos na noite do Poesia do Mundo V. Encerro com trecho de “Ébauche d`un serpent\ Esboço de uma serpente”, traduzido por Augusto de Campos:
“Sol, sol!...Ilusório arquiteto!
Tu, Sol, que mascaras a morte,
Sob o azul e o ouro de um teto
Onde as flores têm sua corte;
No arco-íris das tuas cores,
Tu, traidor dos traidores,
Dos meus laços o mais perfeito,
Poupas a pena de saber
Que o mundo é apenas um defeito
Ante a pureza do Não-ser!”