Maria Lúcia Verdi -
Bertold Brecht se perguntava que tempo era este “em que uma conversa sobre árvores chega a ser uma falta\ pois implica em silenciar sobre tantos crimes”. Há cinco anos tenho desenvolvido, em Brasília, o projeto Poesia do Mundo, que apresenta a leitura, em língua original, por nativos, de autores que me tocaram ao longo da vida e suas traduções. Já foram escutados poetas argentinos, chineses, de língua alemã e, numa edição especial, a poesia do sem par Francisco Alvim.
Poesia tem a ver com a resistência, a resistência frente ao impossível da vida, frente à página branca, frente ao abismo paralisador do ser. Além da linguagem do silêncio, da intimidade e busca é também linguagem do grito, das ruas e da transformação. Neste ano tão desafiador, resolvi focar num movimento poético que muito pouco tem a ver com um discurso comprometido e ideológico, mas que tem tudo a ver com a linguagem da busca de um significado maior no estar vivo e pensar, da busca pela expressão possível dos mistérios e das epifanias em que estamos imersos.
Dia 8 de novembro, na Aliança Francesa, parceira entusiasta do projeto, serão lidos textos de quatro dos maiores representantes do Simbolismo francês, – Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé e Valéry – que chegarão até nós nas vozes dos poetas Francisco Alvim, Maria Maia, Angélica Torres Lima, além da minha. Nesta matéria, e na próxima, adiantarei um pouco do que se trata e compartilharei trechos desses marcos da poesia universal.
Charles Baudelaire (1821-1867) inaugura a modernidade na poesia com uma obra atenta à dor do homem comum, à fealdade, ao mal (mesmo à beleza do mal); autor de As Flores do Mal (traduzido no Brasil três anos após sua publicação), coloca a poesia francesa no mapa internacional. Num período em que o Romantismo imperava (Victor Hugo e Lamartine, semi-deuses) ele traz, num realismo que nada exclui do real como matéria poética, versos com uma sonoridade nova.
A Cidade (Paris) o fascina e assusta com seus contrastes desgarradores, a moda, os artifícios da civilização o atraem em sua máscara de Dandi (dândi enquanto sinônimo de artista superior e lúcido), mas, por outro lado odeia o burguês. Sua maior paixão chama-se Jeanne Duval, uma prostituta a quem dedicou alguns de seus mais belos poemas. Vivendo no momento histórico do pleno desenvolvimento do capitalismo, Baudelaire tem dificuldade em lidar com o dinheiro, trabalha muito, reescreve sem cessar mas tem horror a ser útil.
Paradoxo vivo, Baudelaire fraqueja, desespera, e a partir do fracasso frente à potência que move a vida, a partir de uma impotência radical, cria uma obra pujante, enorme. Segundo ele, sua energia “brota do tédio e do devaneio”. Conta que “Muito criança senti no coração dois sentimentos contraditórios: o horror da vida e o êxtase da vida”. Divido entre o Bem e o Mal, entre Deus e o Diabo, sua poesia é êxtase e dilaceração. Vítima do spleen (tédio) romântico observa uma sociedade em transformação, quer ser reconhecido, quer a ascensão social, mas não sabe lutar por ela. Proponho a leitura de “A falsa moeda”, do seu Pequenos Poemas em Prosa, traduzidos por Aurélio Buarque de Holanda.
“Enquanto nos afastávamos da tabacaria, meu amigo fez uma cuidadosa separação de suas moedas: no bolso esquerdo do colete insinuou pequenas peças de ouro; no direito, pequenas peças de prata; no bolso esquerdo da calça, um punhado de volumosos soldos; e enfim, no direito, uma peça de prata que ele particularmente examinara.
- “Singular e minuciosa distribuição!” – disse eu comigo.
Encontramos um pobre que nos estendeu o boné, a tremer.
– Não conheço nada mais inquietante que a eloquência muda desses olhos súplices que, para o homem sensível que neles sabe ler, encerram, ao mesmo
tempo, tanta humildade e tantas censuras. Ele aí descobre algo que se aproxima dessa profundeza de sentimento complexo própria dos olhos lacrimejantes dos cães batidos.
A dádiva de meu amigo foi muito mais considerável que a minha, e eu disse-lhe: - Você tem razão, depois do prazer de espantar-se, não há prazer maior que o de causar uma surpresa.
- Era a moeda falsa – respondeu calmamente, como para se justificar de sua prodigalidade.
No entanto, no meu miserável cérebro, sempre ocupado em procurar complicações onde elas não existem (com que exaustiva faculdade me brindou a natureza!), entrou de súbito a ideia de que tal procedimento, da parte de meu amigo, só era desculpável pelo desejo de criar um acontecimento na vida daquele pobre-diabo, talvez mesmo de conhecer as consequências diversas funestas ou de outra espécie, que uma moeda falsa pode engendrar quando nas mãos de um mendigo. Não poderia ela multiplicar-se em moedas verdadeiras? Não poderia, também, arrastá-lo à prisão? Talvez um taberneiro ou um padeiro, por exemplo, mandasse prende-lo como fabricante de moeda falsa. Também poderia acontecer que a moeda falsa viesse a tornar-se, para um pobre, humilde especulador, o germe de uma riqueza de alguns dias. E assim a minha fantasia se espraiava, emprestando asas ao espírito do meu amigo e tirando todas as deduções possíveis de todas as hipóteses possíveis.
Ele, porém, rompeu imprevistamente o meu devaneio retomando as minhas próprias palavras:
- Sim, você tem razão: não há prazer mais doce do que surpreender um homem dando-lhe mais do que ele espera.
Fitei-o no branco do olho, e espantei-me de ver que nos seus olhos brilhava uma incontestável candura. Então percebi nitidamente que ele quisera fazer, ao mesmo tempo, uma caridade e um bom negócio; ganhar quarenta soldos e o coração de Deus; conquistar o Paraíso economicamente; enfim, pilhar de graça o diploma de homem caridoso. Quase lhe perdoaria o desejo do criminoso prazer de que pouco antes o supunha culpado; acharia curioso, singular, que ele se divertisse em comprometer os pobres; mas não lhe perdoarei jamais a inépcia do seu cálculo. Se nunca nos podemos escusar de ser maus, há, contudo, algum mérito em saber que o somos; porém o mais irreparável dos vícios é fazer o mal por estupidez”.
Texto machadiano, lúcido, cético e sutil, oportuno para um momento em que o Capital é senhor, o Falso moeda corrente e a Dúvida sobre a natureza humana escancarada a todo momento como um acontecimento antigo e sempre novo.