Maria Lúcia Verdi -
Maria Augusta Ramos, Guta, Maria Ramos, a diretora de O Processo mas também dos longas “Desi”; “Brasília, um dia em fevereiro”; “Justiça”; “Juízo”; “Futuro Junho”; “Morro dos Prazeres”; “Seca”, é de Brasília, embora viva entre Rio e Amsterdam.
Amigas há mais de vinte anos, propus a ela uma conversa–entrevista que fosse além do que significou O Processo ter sido ovacionado por mais de cinco minutos em Berlim.
Teriam o despojamento de Brasília, o traçado, a vastidão influenciado sua estética? Concordando, disse-me que, para ela, “a primeira representação de cidade é o espaço brasiliense”. Nas primeiras vezes que foi ao Rio de Janeiro, sentia-se perdida no espaço urbano, no caos da cidade tradicional. Contou o quanto “a lógica formal da cidade, os enquadramentos” a marcaram.
Com formação em música e mestrado em música eletroacústica feito em Paris, crê que “tudo na música é formal”. Seja a estética de sua cidade natal, seja sua formação a encaminharam para o registro racional, estruturado de uma cinematografia muito particular.
Mas também a família influenciou. Conta um pouco sobre sua família, não diversa da família patriarcal brasileira, onde tantas vezes a mãe defende valores machistas: “Conheci o machismo em casa, a partir de uma mãe conservadora, com atitude machista em relação a mulher. Paradoxalmente, ela me estimulava para ser uma profissional. Estudava muito, três quatro horas por dia de piano. A minha ambição, capacidade de trabalho, o desejo de deixar uma marca, comunicar, tiveram a influencia dela, da demanda materna querendo me incutir o lema: eu sou o que faço. A frase repetida: `se não estudar você não vai ser ninguém´”.
Criada com repressão sexual, mas com o estímulo para ser reconhecida, precisava afirmar-se com seu trabalho. O cinema é sua antiga e permanente paixão. Paixão pelo cinema de arte que havia frequentado na adolescência na Cultura Inglesa, como tantos de nós. Mas “naquela época a Embrafilme estava quebrada, sem possibilidade de mudar da música para o cinema”.
Guta tinha dificuldade de romper com uma possível carreira na música, e se decide por fazer mestrado em música em Paris, o que faz. Mas como no fluxo da vida sempre surgem outros caminhos, decide, então, mudar de rumo, tentar estudar cinema. Acaba por entrar para a Academia de Cinema de Amsterdam, enfrentar a dificuldade do aprendizado da língua, o casamento, a crise existencial dos 27 anos e mergulhar na sua busca de uma vocação.
Estudar cinema em Amsterdam a transforma no que já era e não sabia. Quer aprender como filmar, encontrar e desenvolver uma sua linguagem - rompe com a música e decide-se pelo cinema documental.
O ethos do trabalho estimulado em casa ela reencontrou na Holanda calvinista: “Na Holanda as pessoas vivem para trabalhar”. Bateu a cabeça, experimentou, e se descobriu. Após o primeiro filme estava certa de que aquela era a sua escolha profunda, apesar das imensas dificuldade de fazer cinema: “Buscar verba, lidar com a produção, com a equipe, com o acaso - é sempre uma aposta”.
Mas Maria Ramos não se identificava com os documentários tradicionais, não a “comoviam”. Na Holanda foi apresentada aos grandes documentaristas holandeses e ao cinema reflexivo de Joris Ivens, Johan Van der Keuken e do francês Raymond Depardon, autores de filmes de observação, de busca de uma excelência estética e ética: “Documentários, mas produtos artísticos extremamente formais, que questionam a realidade mais do que tentam explicá-la ou propor soluções”. Isto era o que queria fazer nos documentários: “Uma construção com círculo dramático, algo com algum mistério”. Ou seja, inovar...
Trabalhou para a TV holandesa, fez vários curtas, lá havia espaço para suas propostas e incentivos: “Produtores que ajudavam, não se faz um filme sozinha”.
Reconhece conhecer pouco do cinema brasileiro, embora muito do europeu e do asiático. Tem em Antonioni, Ozu, Bresson e Chantal Akerman, referências fundamentais. Justifica ter maior paixão por esses cineastas do que, por exemplo, por Glauber Rocha, devido a essa formação europeia. Confessa que seu maior interesse era o cinema de ficção e não o documentário.
Aplicou-se nos estudos da arte cinematográfica, muita técnica, intensa busca da forma - decoupagem, efeitos de diferentes lentes, som, edição, montagem - o que faz a diferença do cinema de arte. E isso tudo ela queria aplicar para documentar o que via na e da realidade, seu objeto de interesse e estudo, formada que foi por um olhar sociológico, nascido da leitura de Marx, de Freud, dos pensadores da Escola de Frankfurt.
“Você comunica pela forma e não pelo conteúdo, a forma define o conteúdo. Bresson e Van der Keulen concordam no dito: a forma é o que eu quero dizer. A maneira como você filma define o conteúdo. Uma câmera em movimento ou uma câmera estática muda a percepção do que está sendo dito, a percepção do conteúdo vai ser diferente por parte do espectador. Com a câmera em movimento você vai perceber outros objetos do que quando ela está estática, colocando o espectador como observador”.
Os documentários de Maria Augusta, feitos sem comentários e entrevistas, com cenas construídas a partir dos “personagens” - as pessoas documentadas neles funcionam como personagens. Personagens que vão se revelando a medida em que se desenvolve o filme, seguindo uma narrativa que é próxima da ficção. Documentários formais, reflexivos - que nome dar à sua estética?
Maria Ramos, a musicista, não usa música nos filmes. Sem trilha sonora, a música será a que vem da realidade do dia a dia, nas ruas, nos prédios, nas instituições, nos corredores do poder. Na sua proposta de cinema, formal, construído, os documentários são feitos com a matéria da realidade na qual o som tem 50% de participação: “A autenticidade do documentário está também relacionada ao som direto do que está sendo filmado. A música seria uma distorção”.
A narrativa é tecida a partir da imagem e do som do entorno da cena. Os sons concretos, que pertencem à realidade filmada, também são personagens - os sons e ruídos serão trabalhados, isolados, realçados ou não para assim funcionarem. Os sons do momento da filmagem de cada cena, o desejo da escuta total ao espaço-tempo do presente. Realismo absoluto.
Em todos seus longas, às vezes escutam-se sons independentes das imagens na tela, sons fora do campo da imagem: “A pessoa sai do quadro e a câmera não a segue, apenas se escuta o que ocorre, há uma sugestão, as lacunas das imagens, da continuidade em elipse provocam a imaginação. Provocam um espaço, um tempo para o espectador pensar, se ver dentro do que está na tela. Na edição é preciso incluir o tempo para o espectador ter uma pausa”.
Erika Bauer, cineasta e professora de cinema da UnB, pergunta qual a reação de Maria Augusta frente à realidade das novas tecnologias, das novas mídias, considerando até mesmo dificuldade dos jovens em ir ao cinema, do uso do celular como instrumento de filmagens que serão logo compartilhadas em redes sociais. Resposta: “Tenho compromisso com minha linguagem estética, um cinema reflexivo, de questionamento, que necessita de tempo para pensar, que se traduz no ritmo da edição. Não me proponho a aprender outro tipo de linguagem para atrair público mais jovem, eles mesmos o fazem. Acredito que alguns jovens poderão se identificar com uma proposta de cinema que não é didática, educacional, que vise contar a história do Brasil... É uma questão poética”.
Afirmação interessante pois, se não se propõe a contar a História do Brasil, não se pode não ver o quanto toda sua filmografia se ocupa de aspectos da realidade da sociedade e da história contemporânea do país. Talvez queira dizer que traz a sua versão da História com as histórias de seus cidadãos-personagens, uma poética, como disse.
E Guta continua: “Para mim o registro pelo celular feito pelos jovens – essa prática de todo mundo sair filmando, isso não é arte, arte tem de envolver um pensamento poético, artístico que vem de uma reflexão seja ela do audiovisual, artes plásticas, da literatura. Filmar qualquer coisa de qualquer maneira é uma banalização. Se você usar o celular usando a reflexão, com um objetivo artístico, tudo bem”.
E comenta algo importante sobre o Mídia Ninja: “Eles têm uma função essencial mas estão registrando muito mal, não tem experiência de cinematografia e, com arrogância, acham `que é assim mesmo`. Você perde muito do registrado devido à filmagem ruim. Não é verdade que com uma câmera qualquer um pode fazer cinema. É preciso conhecer o que foi feito antes, estudar”.
Dando como exemplo a poesia concreta e o quanto os poetas concretos estudaram a tradição para chegar ao poema mínimo e visual, Guta critica o fato de que “hoje em dia as pessoas querem fazer arte com três palavras sem passar por nada, ligar a câmera sem passar por nada”.
O Processo levou dois anos para ser filmado. “Dúvidas, desafio, insegurança, aposta” marcaram a decisão da diretora. Tudo muito difícil, confronto constante, sempre os “temas complicados” que não terminam de seduzi-la. Sente que cada filme é como o primeiro, sempre um novo desafio, quer estar à altura, se entrega, sofre. Lembra das dificuldades para filmar “Justiça”, lidar com o universo dos menores encarcerados, das dificuldades em lidar com a polícia para filmar “Morro dos Prazeres”.
Com O processo, mesmo sendo o oitavo longa, as dificuldades se multiplicaram. A consciência de que fazia algo que era um documento especial e de que queria filmar para todos os públicos, o brasileiro, o estrangeiro, pessoas de todas as origens e orientações. “É tão do Capitalismo, do pensamento de mercado, isso de que você tem de filmar para um certo público. Meu comprometimento é com a estética e a ética e não com um determinado público”.
O jornalista Romário Schettino pergunta se ela pretendia realizar um filme imparcial, resposta: “O filme é honesto enquanto parcial, subjetivo, não se pretende um filmes isento, imparcial. Acho que mesmo assim, ele dá conta de um processo complexo, apesar da esquerda ter sido mais retratada”.
Também pergunta Romário sobre a ausência de legendas de apresentação das pessoas filmadas: “A cartela com os nomes, o partido das pessoas documentadas: nenhum dos meus filmes as empregou. Pela situação colocada, no Processo, como nos filmes anteriores, você vai descobrindo os personagens pela fala, gestos, pelo que dizem. Prefiro evitar o `carimbo` Fulano do PT, do PSDB - prefiro descobrir o personagem, problematizar a pessoa retratada”.
É contra o facilmente digerível, não quer um cinema facilitado, quer a atenção, a escuta e participação do público: “Nem mesmo um parlamentar é unidimensional, as pessoas são contraditórias, complexas, é preciso fugir do maniqueísmo”.
No caso do público estrangeiro vendo seus documentários, premiados em vários festivais internacionais, “ele descobre quem é quem pelos argumentos, pelas falas, para ele siglas, instituições e nomes nada significam. Aos poucos as situações se esclarecem”.
O cineasta, ensaísta e professor de cinema da UnB, João Lanari pergunta se a diretora de O Processo gostaria de ter tido mais tempo para a edição: “É sempre bom ter mais, mas acho que o filme é exatamente o que é; estou feliz com a montagem. Karen Akerman, a montadora, e eu editamos durante seis meses, diariamente. Eu venho de formação profissional onde um projeto tem inicio meio e fim, em um tempo determinado. Se eu não estivesse feliz com o produto, não teria exibido, teria continuado trabalhando nele. Não faria outro filme com as tantas horas que tenho filmadas. O Processo é o retrato daquele momento”.
Respondendo à outra colocação de Lanari, diz: “Se tivesse tido acesso às bases dos senadores pró-impeachment eles teriam sido mais contemplados, teria sido interessante, mas não tive acesso aos bastidores da direita. Mas os argumentos da direita são contemplados”.
O que vejo na cineasta premiada, na mulher batalhadora, é uma inteligência que não se conforma com o que estamos vivendo e que busca, numa linguagem peculiar, expor essa realidade. O que me impressiona na obra de Guta é o fato dela conseguir, com um naturalismo às vezes chocante mostrar os horrores brasileiros, esfrega-los na nossa cara, ao mesmo tempo em que, sem qualquer sentimentalismo, toca nosso coração ao mostrar a situação das crianças, dos jovens encarcerados, das prisões atoladas, de uma população de excluídos que precisa ser educada, atendida, que precisa que o Estado lembre-se dela.
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Filmes longas de Maria Augusta Ramos:
Brasília, um dia em fevereiro (1995), vencedor do prêmio do júri no Festival de Documentários do Rio de Janeiro - "É Tudo Verdade".
Desi (2000), primeiro lugar no IDFA, mais importante festival de documentários da Holanda.
Justiça (2004), ganhador de 9 prêmios internacionais.
Juízo (2008), filme que trata do sistema judiciário brasileiro.
Morro dos Prazeres (2013), mostra a convivência numa comunidade carioca após implantação da UPP.
Futuro Junho (2015), filmado semanas antes da Copa de 2014 em São Paulo.
Seca (2015), aborda a ausência de água numa comunidade nordestina brasileira.
O Processo (2018), sobre o impeachment da presidente Dilma Roussseff. Exibido no Festival de Berlim.
Entre os vários filmes de curta-metragem estão:
Eu acho que o que eu quero dizer é... (1993)
Boy e Aleid (1994)
Two Times at Home (1996)
The Secret of the Vibrato (1998)
Rio - um dia em agosto (2002)
Maria Augusta Ramos também dirigiu, em 1998, a série de episódios de documentários de média-metragem para a TV holandesa "Butterflies in Your Stomach".