Maria Lúcia Verdi -
Em algum de seus textos, José Saramago confidencia que “é a conversinha das mulheres que faz o mundo girar”. Certamente o diminutivo não é empregado com intenção pejorativa, sua obra e sua pessoa dizem de seu respeito às mulheres. Com carinho ele se refere à conversinha das mulheres, aquela conversinha de que todos sentimos falta, pessoas de qualquer gênero. A conversinha leve, banal, cotidiana, que ajuda a levar a vida, a vida onde os abismos se apresentam dentro e fora, numa repetição infernal.
Hoje precisamos avisar por WhatsApp que vamos telefonar, quase pedir licença para tomar um tempinho ao amigo, à amiga. As conversas longas, pontuadas por silêncios, pela intimidade que se permite qualquer digressão, perdoa e ri de qualquer lapsus, se solidariza com palavras e gestos com a dor do outro, parecem pertencer a um tempo mesmo perdido.
Algo tão necessário e agradável como pontuar a realidade com pequenos, despretensiosos comentários sobre o dia-a-dia que não sejam da ordem do urgente, do político, está fora da ordem. A ordem, o sistema, o terrível sistema não pressupõe essa perda de tempo.
Ler sem pressa, olhar algum detalhe da natureza, alongar-se num momento de pura contemplação, de introspecção silenciosa, precisa ser ensinado em centros especializados - precisamos pagar caro para tentar aprender até a respirar.
Cada tanto se nota o cansaço das pessoas frente às palavras sem sentido dos discursos retóricos, falsos, vazios que ecoam em nossos pobres seres. A linguagem, a fala, essa capacidade humana que nos aproximaria a um possível conceito do divino está esfarrapada, mutilada, servindo a todos os senhores.
É preciso lembrar da poesia, da música, da filosofia, das ciências e das artes que nos recordam que podemos ser lúcidos, criativos, reflexivos, generosos. Podemos reencontrar em nós o fio perdido que nos retire do escuro labirinto de imagens e sons que nos ameaçam.
Para recordar tudo isso, proponho a leitura de trecho inicial do poema Paisagem, de Charles Baudelaire, na tradução de Ivan Junqueira.
Baudelaire já desconfiava do progresso que traria a modernidade, que por outro lado o fascinava:
“Quero, para compor os meus castos monólogos,
Deitar-me ao pé do céu, assim como os astrólogos,
E, junto aos campanários, escutar sonhando
Solenes cânticos que o vento vai levando.
As mãos sob meu queixo, só, na água-furtada,
Verei a fábrica em azáfama engolfada;
Torres e chaminés, os mastros da cidade,
E os vastos céus a recordar a eternidade.
É doce ver, em meio à bruma que nos vela,
Surgir no azul a estrela e a lâmpada à janela,
Os rios de carvão galgar o firmamento
E a lua derramar seu tíbio encantamento".