Maria Lúcia Verdi -
Visitei recentemente os espaços que recebem a Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, bem como mostras em São Paulo e Brasília. Uma série de imagens e estímulos diversificados ficaram ecoando como pergunta e possível resposta.
Vejo arte onde posso, onde esteja, nos museus, nas pequenas galerias, nos ateliês, nas ruas. Arte, seja qual for, é a manifestação individual ou de um grupo num momento histórico nascida para reproduzir, transformar, comentar, questionar a realidade - e isto interessa e é fundamental para a sociedade.
O título deste artigo nasce a partir da mostra Biofilia (foto de capa), de Maria do Carmo Verdi, exposta no espaço do Coletivo 2e1 no centro de São Paulo. As “coisas” caem no planeta e em nossa cabeça - invadem nosso espaço meteoros, meteoritos, aviões, informação, poluição, balas perdidas, ruídos, sons, imagens sem fim de um país e de um planeta sem resposta.
A 11ª Bienal do Mercosul, dedicada ao Triângulo Atlântico, com curadoria do alemão Alfons Hug, reuniu setenta artistas e coletivos de artistas.
América, África e Europa, a diáspora negra histórica e a atual questão dos refugiados tratada na perspectiva da interdependência contextual. A arte africana e a afro-brasileira são centrais, mas o “encontro entre as culturas indígena, europeia e africana que formam um novo amálgama americano” pontuam todos os espaços expositivos. Uma Bienal engajada com questões fundamentais do presente.
Um artista de Gana Ibrahim Mahama, que teve sua instalação feita pelo também ganês Francis Djiwonu, disse não ter sido avisado de que uma foto de Marielle havia sido retirada de sua obra antes da abertura. Foi decisão do assistente Djiwonu, que recolhera imagens pela cidade para colá-las às caixas de lustrar sapatos que formam uma parede/estante de madeira de 350m de comprimento. Djiwonu não quis ter problemas com a organização e virou a caixa de lado, escondeu Marielle.
Também fez uma autocensura o americano Mark Dion. Ele traz uma instalação onde se interage – ela reproduz um banco antigo - com duas circunspectas “funcionárias” que abrem gavetas de inúmeros cofres. Das gavetas que nos são entregues a partir de uma escolha casual, onde se encontram grãos de feijão, de arroz, erva mate, algodão, commodities, o artista achou melhor retirar as folhas de coca que integravam os valores guardados por “proprietários”. Mercadorias que, assim como as matérias primas, até hoje são levadas dos países do Sul para o Norte. Ou seja, os artistas estrangeiros já sabem onde estão: no Brasil está havendo censura à arte.
As obras expostas na Bienal demandam a lentidão do olhar e reflexão. Na instalação Debret, do artista português Vasco Araújo, temos duas salas contíguas. Numa, inspiradas em imagens do pintor francês e em textos de Pepetela - impressos em páginas ilustradas com belas imagens tropicais - pequenas esculturas saem de ovos expondo cenas de brutal violência não apenas entre senhor e escrava(o) mas também entre a senhora branca e seus escravos. Diz o artista: “É um trabalho sobre como os portugueses se construíram em termos de identidade a partir de uma equação de dominação, violência e confronto com os povos escravizados”.
Na sala ao lado, no entanto, uma cantora lírica negra, uma diva, entoa a ária La Schiava, da ópera Aída. Exemplo das “forças inovadoras que mobilizam a interação entre América, África em Europa”, nas palavras do Curador. Assim esperamos.
No Santander Cultural, uma casinha de adobe e madeira está construída em cima da caixa central do Banco. Emblemática e sintética visão da questão central de hoje: o antagonismo entre o Capital e a realidade social. Também sintético e emblemático é o vídeo de Adad Hannah, artista americano, The raft of the Medusa (Saint Loius). Somos informados de que o vídeo se refere à pintura canônica A Balsa da Medusa (foto acima), de Théodore Géricault, sobre os sobreviventes do naufrágio da fragata francesa La Méduse, afundada em 1816 perto da costa do Senegal.
“Nesta, que é a segunda releitura de Adad Hannah para a pintura, senegaleses foram convidados para encenar um quadro vivo, criando um paralelo entre o episódio histórico e a atual tragédia dos refugiados.”
O visitante, no início, não nota que há levíssimos movimentos feitos pelos que nela estão. A balsa-barca talvez tenha como destino um país do Norte, mas nos lembra uma mítica barca da esperança ao léu. Quem olhava para a Medusa era transformado em pedra, quem olha detidamente para os que estão na balsa, quem olha para o Outro, estará colocando em risco sua confortável individualidade?
Neste Triângulo Atlântico, portanto, arte política não panfletária. A igreja Nossa Senhora das Dores abriga uma instalação sonora onde podem ser escutadas, em vários headphones colocados ao longo dela, línguas africanas e línguas indígenas. Em cada parada se escuta uma língua, uma cultura, que está morrendo, sendo que uma das línguas é falada apenas por uma mulher indígena. Como não lembrar das quatorze paradas de Cristo na Via Dolorosa? O sofrimento se atualiza cada dia.
Em São Paulo, no recém-inaugurado espaço do SESC da Avenida Paulista, está a Visões do Tempo, que reúne nove instalações do artista norte-americano Bill Viola (foto acima), referência desde a década de 70 na área de vídeo arte. Utilizando-se das mais atuais tecnologias da área, o artista propõe uma reflexão profunda sobre o tempo, o envelhecimento, a morte, o estoicismo, a transcendência, questões centrais da existência individual. Assim como no vídeo da balsa acima citado, é preciso parar frente à obra e aguardar o que acontecerá. Ter tempo para parar e olhar, controlar a ansiedade contemporânea.
Viola remete à Sísifo com o Capela de Ações Frustradas e Gestos Fúteis – vídeos de ações repetitivas a denunciar o sem sentido de grande parte do cotidiano. Na “Série Mártires”, exposto permanentemente na Catedral de Saint Paul, em Londres, a violência da interação com a água, o vento, o fogo e a terra testam a resistência humana e dão um recado contrário ao materialismo. Na verdade, Visões do Tempo traz um convite à reflexão sobre o significado da espiritualidade.
Na Pinacoteca de São Paulo, está a surpreendente obra da vanguardista sueca Hilma af Klint (1862-1944) – [fotos acima]. Bem antes de Kandinsky, Mondrian e Malevich, essa discreta mulher realizava uma obra visionária. Ela e um grupo de outras quatro mulheres pesquisavam a comunicação com os espíritos, com a escrita e pintura automáticas. As obras expõem as pesquisas e leituras de af Klint dedicadas ao estudo não apenas de distintas teorias espiritualistas como também à botânica e às descobertas científicas.
O resultado são enormes pinturas ou pequenos desenhos e aquarelas, que documentam uma vida de pesquisa estética a dialogar com interesses intelectuais. Uma obra que, sem dúvida, ficou sem visibilidade na sua época por ter sido produzida por uma mulher.
A galeria do Coletivo 2e1, está instalada no Edifício Califórnia prédio de Niemeyer e Carlos Lemos, de 1951, que antecipa Brasília. Ao entrar, sou surpreendida por um enorme painel abstrato de Portinari (foto acima), tão único na obra dele que pensei tratar-se de trabalho de Athos Bulcão.
A mostra Biofilia, amor à vida, expõe a preocupação de Maria do Carmo com relação ao destino do planeta e o futuro. Em 15 esculturas (coisas?) que caem do teto ou se apoiam no chão, feitas com espuma expansiva de poliuretano pintada, a artista cria um cenário pop-sideral provocador. A iluminação da mostra nos remete aos tempos do psicodélico e do início das aventuras espaciais, sendo que a cativante dança das sombras dos objetos suspensos é quase outro trabalho.
As construções, repletas de detalhes e coisas incrustradas na espuma, fazem com que o olhar indague entre o movimento dos objetos coloridos e a curiosidade pelos pequenos mundos que cada um deles constrói.
Recebemos “lunetas” (paus de selfies com espelhos) para podermos ver o que habita cada escultura. Arqueologia simbólica de um passado e um presente dialogando com um possível futuro? Objetos adquiridos em lojas populares (“made in China”), coisas que a artista encontra descartadas pela rua, se unem às massas de poliuretano criando, segundo o texto de Carolina Paz, “um imaginário icônico sobre uma possível vida humana além dos limites da Terra.” Em sintonia com desenhos e pesquisas de af Klint, Maria do Carmo imagina outras possibilidades de vida em distintos espaços do cosmos.
Em Brasília, no Museu Nacional da República, visito a mostra Conservar o tempo, de Fernando Madeira, nascido em Angra do Reis e brasiliense há muito. O artista, que completou oitenta anos, dialoga, em sua abrangente produção, com toda a arte do século XX. A exposição, dividida em Arquiteturas, Gravuras não gravuras, Paisagem e Figuras, é um depoimento inquieto de alguém que, consistentemente, estava em sintonia com as grandes transformações estéticas do século XX.
Geometrias, abstrações, retratos, viagens visuais - é um prazer caminhar pelas salas e observar as distintas expressões a que vem se dedicando Fernando Madeira, arquiteto especializado em restauração. Gravuras, colagens, aquarelas, desenhos e pintura registram seus recortes sobre a realidade, a especial maneira com que reconstrói, desconstrói essa percepção. Alguns dos “quadros” são compostos com madeira antiga, descartada, onde palavras e textos são inseridos, explicitando as escolhas de Fernando (foto abaixo). O texto em inglês na obra de Fernando Madeira quer dizer: "Alguns trabalhos contemporâneos exigem paciência por parte dos que as vêem"
Após todas essas exposições, me pergunto o que as une, o que as separa. Creio que o fio da História, o questionar o tempo e as intervenções humanas no tempo é o discurso que une tão distintas narrativas visuais. O que as separa é a necessária e bem-vinda individualidade de cada artista, livre para se expressar como quiser neste século onde tantas coisas caem sobre eles, sobre nós, século que demanda, como nunca, um altíssimo grau de atenção e lucidez.