"A vida é de quem se atreve a viver".


Maria L. Verdi: "Na Avenida Paulista observo que o que há de mais sério é um País fora do alcance da maioria absoluta dos brasileiros, mas ao alcance, como sempre foi, de uns muito poucos".
No intenso agora – São Paulo fora de alcance

Maria Lúcia Verdi –

Acabo de ver o documentário “No intenso agora”, de João Moreira Salles, no Instituto da família, na Avenida Paulista, em exibição simultânea ao “O Processo”, de Maria Augusta Ramos, que verei em Brasília.O filme,de 2017, reúne material filmado na China, em 1966, pela mãe do diretor;na Tchecoslováquia e em Paris, em 1968. Uma recuperação de parte das memórias da família Moreira Salles, por meio da seleção de imagens feita pela mãe de João numa viagem à China do início da Revolução Cultural.

1968, momento chave para o mundo e a democracia do século vinte, as lideranças estudantis e políticas destruídas por distintas faces do poder, seja a da Rússia, seja a de De Gaulle, seja a da ditadura brasileira.

Emblemas dolorosos do passar histórico, do inexorável, das ilusões perdidas e, ao mesmo tempo, um desejo do diretor de tentar compreender melhor a mãe revendo o que ela, senhora da alta sociedade paulista, filmou e escreveu sobre o país de Mao, antípoda à sua realidade.

No mesmo IMS se pode ver a mostra fotográfica “São Paulo fora de alcance”, de Mauro Restiffe. Em branco e preto, com filme de alta sensibilidade, uma poética visual melancólica. O título se refere a uma cidade acelerada, incontrolável, mistura de atualidade e ruína.

Nas palavras do curador, Thyago Nogueira, a mostra é “síntese visual da paisagem humana, arquitetônica e topográfica de São Paulo e uma representação aguçada das tensões políticas e sociais que dão forma ao espaço urbano. [...]Os usos variados e inesperados que os habitantes fazem da cidade, os conflitos entre o desenvolvimento econômico e a preservação do patrimônio, a complexidade do relevo urbano – tudo está nas imagens.

Ontem à noite, do alto do prédio do Terraço Itália, vi a cidade de cima, como se ela toda coubesse em nossos olhos, uma gigantografia construtivista, quase abstração. O edifício ocupado que pegou fogo há algumas semanas lá embaixo (foto), os morros em torno, o por do sol, e a obsessiva pergunta frente ao presente da cidade e do país: que traços do nosso agora apontariam para alguma esperança? As esperanças dos estudantes e operários de maio de 68 em Paris, em Praga, o discurso de Cohn-Bendit, as utopias sendo arrasadas, os mortos como tristes emblemas.



Há quase uma semana na cidade, vi as mostras mais significativas em cartaz, caminhei por distintos bairros, passeei pela Paulista fechada aos domingos observando todas as tribos possíveis nesta síntese do Brasil que é esta urbeassustadora e fascinante. Ironias por todos os lados. Em frente aos prédios símbolos do Capital, os habitantes da rua improvisam refúgios, expressam uma identidade única: a dos excluídos. Um lê um livro concentrado, numa pose semelhante à minha na rede em casa, o braço levantado; outro que olha desde seu colchão, vestido com uma camiseta onde se lê EQUIPE TI – olha, desde sabe-se lá qual espaço, a festiva e aflitiva confusão encenada para ele, com o brilho especial das cores trazidas pelos vendedores africanos. Fora do seu alcance, seja o país onde nasceu seja o do continente das suas origens.

A ser analisado o fato de que João Moreira Sales registra o fim do sonho revolucionário na França e na Tchecoslováquia de 68, mas não o atualiza enquanto fim na China ou no Brasil. Sobre a China, sempre mostrada pelos olhos encantados da mãe (“encantamento“ é a palavra usada pela voz masculina que narra o filme em off), não há uma reflexão sobre o que é a China pós Mao, a maior economia do mundo hoje.

Sobre o Brasil, ao final do filme, as imagens do povo que se revolta frente ao assassinato do estudante André Luiz. A voz narradora, extremamente intimista, comenta a tristeza francesa e tcheca frente aos assassinatos e suicídios. Observa que as várias câmeras que registraram o momento histórico do assassinato de André Luiz não mostram tristeza e dor, com exceção de uma única moça (a voz pergunta quem será - irmã, namorada ou amiga), mas sim mostram a raiva e a revolta popular, os clamores pelo fim da ditadura.

Raiva e revolta não se vê na Paulista aos domingos, apenas as expressões democráticas de grupos e individualidades as mais diversas. Estarão esses sentimentos, mais do que nunca, fora do alcance dos brasileiros do radical século vinte e um? Ou será uma impossibilidade atávica a nossa para processarmos grandes transformações, realizar cortes radicais, epistemológicos, numa sociedade que se acostumou à miséria e à injustiça como muito poucas?

Por outro lado, ver arte pontuando todos os grupos humanos na Paulista é animador. Música de todo tipo, estéticas de todos os gêneros, manifestações ideológicas e religiosas costuradas por intervenções artísticas que livremente expõem as diferenças. Que assim continue! (Na foto, obra de Pedro Geraldo Escosteguy).



Sentada num lan house da Paulista, escutando o dialeto do africano que conversa por Skype ao lado enquanto digito, concluo que no intenso agora da São Paulo que observo o que há de mais sério é um País (no sentido mais pleno da palavra) fora do alcance da maioria absoluta dos brasileiros, ao alcance, como sempre foi, de uns muito poucos.

E sobre esses muito poucos, me pergunto com ceticismo: o modelo que eles desejam para o Brasil o transformaria em um país alcançável pela maioria?

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