Maria Lúcia Verdi –
"De que forma a catástrofe / traz perturbações ao velho método / de aplicar uma distância ao mundo?" (Gonçalo M. Tavares)
Porto – Quando a terra voltar a brilhar verde para ti, verso de Hölderlin, dá título à mostra Extensão do Romantismo, atualmente no Museu Romântico da Quinta da Maceirinha, no Porto. Foi nessa residência que se exilou Carlos Alberto, rei do Piemonte e da Sardenha, nela vindo a falecer em 1849. O Museu foi despido de seu mobiliário de casa burguesa oitocentista para abrigar a exposição. Diz o libreto da Mostra: “(…) num mundo ameaçado de extinção pela ação do homem, como é possível não pensar o museu enquanto lugar em urgência de metamorfose?” A Mostra é ocasião para revisitar temas trazidos pelos românticos, hoje atualizados de modo agônico.
Das janelas do Museu vejo o telhado da casa, o rio Douro, a ponte Arrábida e a luz do dia, luz que é tema central da ciência e da pintura. A luz também é o tema de A rosa dos temperamentos, de Goethe, elaborada juntamente com Schiller, poeta romântico alemão também fundamental. Entre os temperamentos - melancólico, colérico, sanguíneo e fleumático - o melancólico, como se sabe, impera entre os românticos dos séculos XVIII e XIX. Luz à qual se dirige Goethe no fim da vida, em 1832: “Luz, mais luz!”
A luz é objeto das pesquisas, pinturas e desenhos de duas extraordinárias mulheres revisitadas pela Mostra. A sueca Hilma af Klint (1862-1944), autora da primeira imagem abstrata, em 1906, recém descoberta pela crítica (mostra em Estocolmo, 2013) e já exposta na Pinacoteca de São Paulo (2018). Af Klint, como Júlio Dinis, é uma estudiosa das plantas, além de temas transcendentes; e a suíça Emma Kunz (1892-1963), pesquisadora, desenhista e “curadora” respeitada atualmente pelo mundo da ciência e da arte, que descobriu os poderes curativos do elemento que intitulou AION A, numa rocha existente em Wurenlos. Como af Klint, seus desenhos geométricos buscam estruturar ideias filosóficas e espirituais. Mulheres que buscaram penetrar, por todos os meios, no mundo dos mistérios da ciência da natureza, mote romântico por excelência. José Almeida Pereira, um dos artistas portugueses da mostra em questão, dialoga com as duas em duas de suas obras.
Obra de Hilma af Klint
Obra de Emma Kunz
O verso de Hölderlin Quando a terra voltar a brilhar verde para ti é também usado pelos cineastas Jean-Marie Staub e Danièle Huillet para intitular o filme que realizaram sobre a morte de Empédocles, a partir do texto da peça incompleta do poeta alemão. Filme que transcreve os diálogos do autor na interpretação de protagonistas quase sempre estáticos, tendo por cenário um campo siciliano onde apenas as ramas das árvores se movem. O Quinto hino à noite, poema de Hölderlin do qual se retirou o verso mencionado está no livreto da mostra, em tradução do poeta Jorge de Sena. Da ideia de um mundo mitológico, onde deuses brincavam com os homens, "uma pesada e tenebrosa venda lhes cobria as conturbadas almas" até a chegada de Cristo, com mensagem esperançosa da vida após a morte.
Na mostra está exposto o livro original do herbário de Júlio Dinis (na foto,abaixo), quando se comemoram os 150 anos da morte desse romântico, e a partir dos espécimes nele expostos algumas paredes do museu são ilustradas. Toda a mostra está centrada no conceito de releitura, de citação, de intertextualidade. O tema da vida e da morte e da hipotética transcendência, romântico e eterno, é trazido por meio de desenhos, pinturas e esculturas que revisitam A rosa dos temperamentos, de Goethe e Schiller; A árvore do conhecimento N.1, Série W, de Hilma af Klint; a obra de De Chirico; O mar de gelo, de Caspar David Friedrich e A morte de Empédocles, de Salvator Rosa.
Ao percorrer os espaços encontramos obras dos artistas portugueses Rui Chafes, Ilda David, Teixeira de Pascoaes, Manuel Rosa, José Almeida Pereira e Lourdes Castro que dialogam com nomes clássicos do romantismo, enquanto escutamos a intensa peça para órgão de tubos e sino, composta especialmente para a ocasião por Jonathan Uliel Saldanha e Pedro Monteiro.
O ambiente que mais me tocou é composto por quatro elementos: em duas pinturas, colocadas em paredes opostas, José Almeida Pereira afasta (e aproxima) o gelo do romântico alemão Caspar Friedrich e o fogo do barroco Salvator Rosa. Entre as duas grandes pinturas está um belo piano aberto e, à boa distância, pende do teto escultura de Rui Chafes intitulada O silêncio de Giorgio De Chirico, que sintetiza numa forma negra elementos básicos dos cenários do pintor italiano. Entre o mar de gelo e o fogo do vulcão que recebe Empédocles preenchem o espaço a música abstrata e repetitiva de Saldanha e Monteiro, bem como o silêncio evocado pela composição desse cenário.
O que faz Empédocles decidir por dar fim à vida após dela ter tomado plena consciência, é a hybris – o orgulho, a arrogância, a falta de medidas. Não se pode querer ser um deus, controlar o incontrolável, modificar o impossível: a efemeridade da matéria. Neste século XXI, onde as questões românticas relacionadas à revisitação da natureza, ao conceito da liberdade e da revolução são reatualizados, felizmente o temperamento colérico e sanguíneo estudados por Goethe e Schiller estão não apenas nos neofascistas mas também nos neorromânticos, que insistem em lutar pela resistência frente ao império do neoliberalismo, do consumismo e do individualismo.
Colocado como texto final do libreto da Mostra, lemos Os sete selos (ou A canção do sim e amén), de Nietzsche, na qual se repete o verso Porque eu amo-te, ó Eternidade! Essa eternidade que se coloca como pergunta, como angústia, como mote romântico e pós-romântico está aí, está aqui e agora, sempre como fantasma e concretude.
Aguardem, em breve a parte III dessa viagem.