"A vida é de quem se atreve a viver".


Instalação na Mostra “Entrelaçar”, do artista chinês Ai Wei Wei, na Fundação Serralves, na cidade do Porto, em Portugal
Anotações de uma viagem a Portugal – III – Final

Maria Lúcia Verdi –

Escrever as (?) últimas anotações sobre o que vi de arte no Porto já em Londres, destino final desta viagem em tempos dramáticos. Privilegiada por poder distanciar-me fisicamente de um sofrido território, aproximando-me dos afetos e da Arte, ela, o que me alenta nesses tempos sombrios. Tendo família no velho continente, posso me permitir essa viagem num momento em que o câmbio torna quase impraticável afastar-se, para a maioria absoluta da população.

Havia escrito sobre a mostra Entrelaçar, de Ai Wei Wei, atualmente na Fundação Serralves (algo como o Inhotim português), no Porto, aproximando seu trabalho do de Franz Krajcberg, mas fiz bobagem (o vinho, os reencontros) e não salvei o texto. Recuperar momentos, função impossível da escrita, se trata sempre da luta com o irrecuperável. De todo modo, a perda pode abrir outros caminhos. Recuperar a partir do aqui e agora e suas novidades. Here, there and everywhere.

A reflexão central do paralelo perdido entre o artista chinês e o polonês-brasileiro se tratava do fato de Krajcberg retirar da floresta pedaços de troncos e raízes calcinados e expô-los como eram, como são após os incêndios, sem manipulação; e o fato de Ai Wei Wei manipular, com uma equipe sofisticada, dentro da milenar tradição da refinada artesania chinesa, o que retira da mata atlântica. Essa questão me tocou - a imediatez contraposta ao “mumificado”.

Ambos os artistas lutam pela proteção do meio ambiente, mas tratam o tema de modo distinto. Krajcberg é mais “modesto” no trato de suas esculturas enquanto objetos de arte, Wei Wei ambiciona uma quase imortalidade, fundindo em ferro o material recolhido. Krajcberg tornou-se brasileiro, aqui viveu a maior parte de sua vida. Atrevo-me a dizer que, o primeiro, talvez por mais identificado com ou por ter aprendido a aceitar, embora criticamente, nossa cultura do instante, da falta de memória e compromisso; o segundo, atavicamente ligado à tradição chinesa de reproduzir e imortalizar a produção artística das distintas dinastias transporta para seu país o molde da árvore brasileira e lá a transforma em outra coisa, em uma escultura resistente ao tempo, com a qual se identifica a ponto de dizer “Esta árvore sou eu.”

Abro breve parêntese sobre a questão do imortal na cultura chinesa. A começar pelos Imortais do Taoismo e do Budismo, cultuados (de modo pragmático, visando à obtenção de algo) no dia a dia pelos chineses, até o desejo de continuidade\permanência presente nas reproduções perfeitas de objetos museológicos que encontramos nos antiquários chineses e que mesmo os mercados populares exibem - distintas qualidades para distintos poderes aquisitivos. É possível ter em casa praticamente qualquer objeto que nos tenha fascinado. As técnicas milenares de reprodução desenvolvidas pelos chineses são inigualáveis, a cópia que realizaram do interior e exterior da árvore escolhida para ser o centro de Entrelaçar, é impactante e o trabalho e verba empregados impressionante. Creio que o vídeo sobre essa execução, verdadeira epopeia, algo que recorda as filmagens de Fitzcarraldo por Herzog, esteja disponível na internet.

Wei Wei veio, em 2017, a convite de Marcelo Dantas, realizar uma obra in situ no Brasil. Visita a Mata Atlântica e resolve dela “apropriar-se” por meio de exemplares de troncos e raízes que, transportados para a China, serão fundidos em ferro e expostos. Associo a este seu ato, a esta sua produção, o Exército de Terracota, a “instalação” funerária feita pelo primeiro Imperador da China. Qin Shi Huang, apavorado frente à inevitável mortalidade, resolve mandar executar miniaturas de seu exército e seu mundo, enterrando-as consigo como proteção no indesejado além-túmulo. As réplicas dos inúmeros objetos, dos guerreiros e dos cavalos são inesquecíveis e comovedores os pedaços dos corpos que jazem no chão.

Antes de sair da China publiquei O caractere do sono – entre Oriente e Ocidente, do qual cito o texto escrito sobre Qin Shi Huang: O exército de Qin Shi Huan a dizer do medo da morte do Primeiro Imperador. Elixires ineficazes, alquimias impossíveis. Ao norte, ao sul, ao leste e ao oeste – tudo aos pedaços, cacos do impossível desejo. O que fundamenta a eternidade? Pedaços e mais pedaços de guerreiros. O braço solto, armado à espera da inimiga, o rosto isolado no monturo olímpico, para sempre ele mesmo. O Imperador não pode não morrer. Cavalos para sempre. Guerreiros para sempre. Todos a dizer do sorriso daquela dama, a ubíqua, omnisciente Senhora, exaustos de renascer a cada olhar.

São poucos trabalhos apresentados por Wei Wei em Entrelaçar, esculturas desfiadas de um mesmo novelo temático, Natureza a ser preservada e o artista como sujeito e objeto frente a essa questão. No meio da ampla sala, os corpos copiados em gesso de Wei Wei e de uma mulher que é uma modelo brasileira. Corpos brancos (anjos? não-corpos? materialidade transcendida?), deitados sobre prosaico colchão, artefato industrial (a China que todos consumimos, diariamente, por toda parte), distantes da grama de hipotético paraíso. Na altura da cabeça do clone do artista esparramam-se sementes vermelhas de Ormosia arbórea, olho-de-cabra, árvore endêmica da América do Sul. Os quatro elementos, dois corpos, colchão e sementes que formam a instalação, trazem a imediata (e óbvia) ideia do sexo como força vital geradora de criação; curiosamente as sementes vermelhas surgem unicamente da cabeça do artista, a figura feminina estando deitada de lado, como distante daquele dasparrame, daquela ejaculação mental.

A peça-chave da mostra é a Pequi Tree, a reprodução em ferro, a partir de molde feito na Mata Atlântica, em Trancoso, de árvore de mais de trinta metros. Como qualquer morador do centro-oeste, conheço árvores de pequi. Consultei amigos e de fato parece impossível, pela altura e forma, que a Pequi Tree seja de fato um pequizeiro. Também estranhei a informação de que seja, como diz o texto introdutório, “um exemplar com mais de 1.200 anos.” Lembrei-me da performance de 1995 do irreverente artista chinês quebrando o que diz ser uma urna da dinastia Han (206 aC-220 aC.). Tendo vivido cinco anos na China, creio que o vaso quebrado era uma cópia, o que não desvalorizaria o simbólico dessa performance. Diz um provérbio chinês: “Um grande copista é um grande artista”.

Me pergunto como Wei Wei terá identificado árvore de mais de 1.200 anos, no meio da floresta. Sabendo, como todos, da sua atitude sempre provocadora e desmistificadora, acho possível que a questionável datação e o nome dado à árvore escolhida para ser incorporada-imortalizada sejam blefes de quem sabe o quanto o mundo da arte é feito de ficção e disso se beneficia. No entanto, se são verdadeiras ou falsas essas informações, não é o fundamental em Entrelaçar.

O que é o fundamental, me pergunto. Talvez o fundamental seja o desejo de incorporação anímica à árvore que ele traz para a China aos pedaços, como uma relíquia, em moldes feitos por onze especialistas chineses. Todo o processo durou três anos, nunca um trabalho do artista exigiu tanto esforço e tempo, mais de cem pessoas envolvidas no processo. E fundamental também me parece o fato de o artista ter submetido seu próprio corpo ao mesmo processo de reprodução a que a árvore foi submetida, dolorosa moldagem, feita por especialistas alemãs. É aflitivo o registro em vídeo do processo, que durou três horas, o suor escorrendo do rosto e a dor acompanhando essa execução, principalmente na área genital. Ao contrário do momento da foto entre as frutas, puro prazer e entrega a um antropofagismo idílico, essa entrega do próprio corpo ao processo de moldagem é de outra ordem

Visitei essa mostra num momento em que Portugal é o país com maior número de vacinados contra o Covid da Europa e quando o país se preparava para eleições distritais, eleição vencida, no Porto, pela terceira vez, por Rui Moreira, presidente da Câmara, sem partido. Precisava sair do horror político-sanitário que estamos vivendo no Brasil, da falta de perspectiva de mudança imediata. Estar, por duas semanas, numa realidade tão diversa e poder mergulhar, mesmo que superficialmente, no romantismo e sua releitura e na produção de um artista tão polemico foi um bálsamo.

Sair do tempo presente em meu país, reencontrá-lo de outro modo em outros territórios, rever-me nesse espaço de origem (avô português e uma misteriosa história) numa cidade acolhedora, onde os espaços trazem à mente tantos espaços brasileiros, Minas, Bahia, Rio, Maranhão, Recife. Uma viagem fora do quarto, longe dos livros. O prazer de voltar a assistir um concerto numa Casa da Música que, como todo espaço de espetáculos em Portugal, exige comprovante de vacinação, máscara e distanciamento. Uma tranquilidade que não sei quando teremos.

Viagem. Intervalo. Recorte. Distração. Encantamento. Continuidade e pergunta. Talvez não por acaso vejo com certa melancolia os turistas barulhentos da Ribeira, em frente ao rio Douro. Impermanências. Desejo de continuidade. Pequenas imortalidades.

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