"A vida é de quem se atreve a viver".


A Feira do Livro 2021, do Porto, celebra os 150 anos da morte do escritor romântico Júlio Dinis
Anotações de uma viagem a Portugal - I

Maria Lúcia Verdi –

Nasci no Porto, a cidade e seus arredores / As praias próximas/ descendo para o sul/ Permanecem para mim a pátria/ dentro da pátria/ A terra materna/ O lugar primordial que me funda” (Sophia de Mello Breyner Andreser)

Porto – Sair do Brasil num longo, interminável momento de pesadelo. Desejo e culpa. O temor (frente ao vírus com todos seus nomes) é menor do que a vontade de compartilhar o cotidiano com seres amados, do outro lado do Atlântico. Decido viajar.

A fila da imigração em Lisboa é um pesadelo. Duas horas em pé num espaço lotado, a escuta de tantas línguas me distraindo, em torno de mim a diversidade dos seres humanos como uma exposição viva. Por fim, o Porto.

O Porto, essa cidade de rio e mar, com arquitetura de quase todos os tempos, das muralhas ao contemporâneo, panoramas que são pinturas ao céu aberto, céu repleto de gaivotas, o som delas como trilha sonora. O Porto que Agustina Bessa-Luís definiu não como um lugar, mas como um sentimento.

Na tarde da minha chegada visito a Feira do Livro do Porto, em seu último dia. Acostumada ao uso do Pix e sem ter trazido cash, esqueci-me dos cartões, passeei pelos convidativos estandes sem poder adquirir nada, mas fotografando objetos de desejo, postergando o desejo de imersão. Yoko Ono e O Jardim da aprendizagem da liberdade, Franz Kafka e Aforismos de Zurau, Ezra Pound-Camões, Saint-John Perse e Habitarei o meu nome, Kobayashi Issa e Os Animais, Edmond Jabès e O livro das questões.

Todos, em algum momento comigo, em papel e com peso em minhas mãos. Alfarrabista.Eu. Leio o nome do estande e não vejo o ponto. Leio Alfarrabista eu, me identifico e fotografo. Eu e meus erros. Eu corresponde a Europa, onde estou, alfarrabista eu. Os erros que me levam a caminhos poéticos às vezes risíveis. Preciso me perdoar.

A publicação feita para esta Feira do Livro - que celebra os 150 anos da morte do escritor romântico Júlio Dinis, morto aos 31 anos de tuberculose, conhecido no Brasil pelo As pupilas do senhor reitor - tem um título: Herborizar. E a explicação vem no texto do Coordenador programático da Feira, Nuno Faria: “Herborizar para resgatar o tempo. (…) Herborizar, a ação de fazer herbários, foi uma prática muito comum, não só entre botânicos, mas também entre escritores, que se estendeu até ao século XIX (…) Convoca uma prática meditativa que se realiza a dois tempos: a caminhada na natureza em busca de exemplares a colher e o longo e cuidadoso tempo de preparação que se segue à sua preservação. (…) Júlio Dinis fez um herbário na Ilha da Madeira por alturas da última das três estadas que ali realizou para se curar da tuberculose de que padecia. É uma peça plena de delicadeza em que sentimos, concretos, os gestos e a respiração do escritor.” Vontade imediata de viajar a esta ilha. Sensação de que é um desejo de improvável realização. Mas os gestos e respiração dos escritores estão sobretudo na sua escrita. Consolo. Penso no quanto essa busca por exemplares feita pelos aficionados pelo mundo vegetal é semelhante à nossa, alfarrabistas, que buscamos os livros, o quanto o tempo de preparação, de observação dos espécimes se assemelha à nossa reflexão em cada leitura, ao tempo de processamento da plena compreensão, às vezes atingida plenamente apenas numa segunda, terceira leitura, décadas depois.

A Feira do Livro 2021 tem como mote “…os romantismos, assim, no plural, (…) o que caracteriza a experiência espiritual romântica e como ela se manifesta em diferentes épocas, em particular no nosso tempo.” Portanto, a Feira cruza com a literatura, música, cinema, animação e exposições, tendo como programadores a eminente especialista em Romantismo, Helena Carvalhão Buescu e Gonçalo M. Tavares, um dos principais escritores portugueses de hoje.

Num dos textos de apresentação, Romantismo para além do Romantismo. Entre arder e durar, lemos: “Como hoje podemos falar do Romantismo nas diferentes áreas criativas e na ciência? O que é hoje ser romântico? Ir até os limites? Ser utópico? Não dar atenção à utilidade? Colocar-se numa posição exterior ao capitalismo? Estudar as nuvens?”

Infelizmente cheguei tarde para as palestras, nomeadas como Lições. Mas deixo aqui os títulos para os interessados, esperando que possam ser acessíveis: Palimpsestos: Júlio Dinis e o espírito romântico, por Helena Carvalhão Buescu; A floresta das intensidades, romantizar o mundo com Maria Gabriela Llansol, por Maria Etelvina Santos; São Mateus e o anjo, de Caravaggio, por Mário Cláudio; Joseph Beuys e a tradição do pensar mítico alemão, por José Miranda Justo; A perenidade da existência e a infinita melancolia em Kurt Cobain; Novalis, o que está para além das coisas, por Paula Guerra; Os dois Empédocles: o histórico e o intempestivo, por Sousa Dias.

Nas conversas organizadas o tema é a atualização do espírito romântico, sobretudo na relação com a natureza e a sustentabilidade. No Museu Romântico há uma mostra, que visitarei, intitulada a partir de verso do grande romântico alemão, Hölderlin: “Quando a terra voltar a brilhar verde para ti”. Verso tão apropriado para o mundo de hoje e para nós, brasileiros, preocupados, mais do que nunca, com esse brilho a se ofuscar.

Uma corda sobre o abismo é o título da mostra que reúne cineastas muito diversos: Movimento em falso, de Wim Wenders; O último mergulho, de João César Monteiro; Caravaggio, de Derek Jarman; Beuys, de Andres Veiel e Heinrich, de Helma Sanders-Brahms. Seleção que dialoga com as referidas Lições, ocupando-se de “precursores ou nomes canônicos do Romantismo alemão – como Goethe, Hölderlin ou Kleist -, mas também figuras intempestivas que vieram antes ou depois da época que a História caucionou – um Caravaggio anacrónico, excessivo e melancólico, e um Beuys, legítimo herdeiro da tradição romântica alemã, figura maior do século XX.”

Consegui ver no YouTube o filme do cineasta português, a quem tive o prazer de conhecer em Roma, filme curiosíssimo que atualiza Hölderlin numa Lisboa dos excluídos, prostituídos e suicidas que rondam a cidade nas noites festivas de Santo Antônio.

Em contraste com qualquer conceito de Romantismo, visito a mostra My mind is a cage (Minha mente é uma gaiola), do artista americano Roger Ballen. A mostra está instalada no Centro Português de Fotografia, no prédio da antiga prisão do Porto, onde esteve encarcerado o poeta romântico Camilo Castelo Branco (https://cpf.pt/). Ballen é mais que fotógrafo, atua como arqueólogo dos horrores de nosso tempo, compõe e fotografa cenários a partir da seleção de pessoas doentes, feias, sujas, de ambientes miseráveis, de animais como ratos, cobras, porcos e pássaros que interagem com elas. Ballen realiza grafites nesses cenários que utiliza para fotos e vídeos e faz-me lembrar Hieronymus Bosch e seus seres imaginários e terríveis. Como uma atualização de um Bosch dividido entre a transição de um mundo medieval para o moderno, Ballen traz um olhar dividido entre um século XX comprometido com lutas humanistas e o século XXI de um Antropoceno que aponta para um futuro de cyborgs.

Qual o romantismo possível quando vemos a obra de Roger Ballen? Apenas aquele que moveu os românticos revolucionários, o do desejo desesperado de mudança e de justiça.

Aguardem, em breve a parte II dessa viagem.

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