"A vida é de quem se atreve a viver".


"No quadro Pastoral, de Tarsila do Amaral, uma criança e um velho estão sentados em um banco branco sem apoio, um banco sem pilastras. Tendo em conta as roupas, poderiam ser uma criança do dia de seu batizado, ao lado do Avô"
Arte, psicanálise e fé

Maria Lúcia Verdi –

Freud se refere à Psicanálise como arte do tirar e não do por, tirar de lá, do lugar do isso (ça), num jogo entre dois. Tirar tudo o que a linguagem oferece até chegar ao fundo, ou ao raso, de uma compreensão. No caso do artista, como Michelangelo retirando da pedra o excesso e revelando a imagem secreta que nela havia. 

Bion propõe que nesse jogo o psicanalista controle memória e desejo, busque intuitivamente o essencial do que lhe informa o analisando, fazendo de cada encontro uma novidade e uma curiosa, especialíssima, aventura em busca do que ele nomeia como “O”, um caminho para a percepção das infinitas possibilidades do sujeito que quer conhecer seu desejo.

Bion disse que não bastava uma interpretação ser correta, ela precisaria ser bela. Em sua obra, sem preconceito, ele emprega o termo alma, além do de mente e espírito. Alma, Infinito e o Belo ideal estão no mesmo campo semântico.

Penso na angústia frente ao Infinito, como todos nós a conhecemos: algo que nos faz encarar o tamanho sem fim do “que não anda, do que não funciona”, como no Real de Lacan. Ainda com Lacan, recordo-o dizer em O triunfo da Religião, ter "ela sido pensada para curar os homens, quer dizer, para que não se deem conta do que não funciona."

Para Meg Williams, escritora e artista inglesa estudiosa de Bion, o Infans, o sujeito em análise, não precisa de ilusão – para ficarmos com Freud, da ilusão da religião – mas do Infinito. O sentimento transformador do que nos supera, o sentimento de que nos fala Bion, com seu O, o O da Origem, do Um, do vazio. No Futuro de uma Ilusão, Freud anota que o ser humano tem um “elo indissolúvel” com o Cosmos.

A vivência de Bion na Índia durante a primeira infância, a escuta das histórias da mitologia hindu, provavelmente narradas pela Ayah em uma das línguas do país ou mesmo em sânscrito, certamente alimentaram o imaginário do pequeno Wilfred. Todo aquele universo infinito de sons, cheiros, sabores terá sido terra fértil para a construção de um pensamento original e mesmo corajoso em relação ao que se pensava e escrevia em psicanálise. Lembro do título de um livro de Pasolini: L´odore del´India (O cheiro da Índia) e imagino Bion imerso entre aquelas multidões, aqueles grupos, toda aquela concretude;  a intuição do Infinito, do  Mistério e do Desconhecido surgindo-lhe a partir daquele lugar, da Índia atemporal.

Guimarães Rosa, para ficarmos com Bion e Platão, cria Riobaldo - aquele que fala longamente a um interlocutor mudo num puro, acho que posso nomeá-lo assim, num puro “ato-de-fé” (vide Bion e Lacan) – cria Riobaldo e em Grande Sertão elabora, entre outros, o tema da fé e do infinito. Em um momento Riobaldo coloca a seguinte afirmativa-pergunta: “A gente vive não é caminhando de costas?”. Diz também, em outra passagem: “É e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é”. 

Bion sugere que assim seja entre o analista e o paciente: um sonho a dois num labirinto, no desconhecido. O fundamental, creio, é acreditar verdadeiramente em um processo: analítico, amoroso, artístico, seja qual for e seguir-lhe o fluxo.

Voltando a Guimarães e sua metáfora, o sertão é a natureza, do mundo e do homem. O Sertão, como uma epifania, um insight, simplesmente acontece, se presentifica na mente do “Principiante” (como diz o Zen), como em um êxtase. Volto a citar Riobaldo-Rosa: “Sertão, – se diz, – o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem.” Como todos lembram, Picasso dizia “Eu não procuro, acho”. Freud, sempre no Futuro de uma Ilusão, nos lembra que a natureza “se ergue contra nós, majestosa, cruel e inexorável”, sendo a religião “um alívio para a psique” pois a vida sem a religião seria “intolerável”.

Vejamos como ecoam todos esses temas e questões no (tradução minha da versão francesa do original japonês) “Poema da Fé no Zazen”, do Mestre Sozan 1789-1868, da linha Rinzai:

Ninguém atinge o ápice
da mais alta montanha.
Ninguém compreende este lugar misterioso.
Nem Buda, nem Deus,
nenhum santo, nenhum sábio pode exprimi-lo
pela virtude da eloquência,
nem mesmo pelo silêncio.
É refletindo profundamente e levando longe
nossos estudos,
que chegaremos a esse lugar.
Mesmo que nós o observássemos todos os dias,
é como se nós não tivéssemos olhos,
mesmo se escutarmos toda a noite,
é como se não tivéssemos ouvidos.
Melodia de uma harpa sem cordas,
ou de uma flauta sem furos,
esta música comove os corações mais frios,
sua harmonia toca o mais irônico dos espíritos.
O sujeito e o objeto, ambos desaparecem,
a atividade dos fenômenos e a profundidade da sabedoria
adormecem.
Não há mais ansiedade, projetos, cálculos,
não se pensa mais.
O vento cai, as ondas desaparecem,
o oceano se acalma.
Com o entardecer, a flor se fecha, as pessoas partem,
então a paz da montanha se torna profunda.

Diferentemente da visada religiosa, próximo da visada filosófica, o Zen propõe a ética da busca do equilíbrio, do exercício da neutralidade em relação aos estímulos que nos vem do que chamamos de realidade.

Diz  Bion que o analista deve proceder no consultório como um cientista, um artista e um teólogo. Propõe uma delicadíssima alquimia, a análise como experiência estética, obra de arte construída a dois: cada tanto florescer no êxtase do encontro com os pedaços de infinito que a compreensão cada tanto oferece, em meio ao vir-a-ser da  jornada.

Êxtases de compreensão como o que Drummond descreve quando fala do momento em que, sem poder compor o poema, tendo-o pensado por uma hora, desiste de buscá-lo, compreendendo que deve apenas descrever essa impossibilidade, terminando por dizer que “a poesia deste momento inunda minha vida inteira”.

Em busca da verdade, da compreensão, Freud afirma que o analista deve poder cegar-se artificialmente para ver melhor. Bion, para dizer o mesmo, usa a metáfora barroca do “facho de escuridão” auxiliando a ver. Cito: “`O` é um lugar escuro que deve ser iluminado pela cegueira”. Pura poesia. A mente daquele que medita em Zazen, sentado, buscando centrar-se na respiração para controlar o fluxo de ideias e memórias, buscando esvaziar-se, - essa mente busca ver a partir da escuridão, sintonizar-se com a respiração da natureza.

Para Bion, o analista deve buscar tocar o pulso do seu companheiro de jornada, o Pathos que aquele que o buscou traz em sua demanda. Ethos e Logos devem estar subordinados ao Pathos. O saber em demasia, pode afastar a sabedoria, afirmação que o Zen confirma. Creio que para aceitar, ou para suportar, o sem sentido da existência, é preciso negociar com o absurdo e com o silencio dos elementos. Não há respostas, como nos Koans zen, perguntas ou histórias paradoxais. Negociação com o absurdo que requer a rara arte da paciência, paciência que Bion aconselha - paciência, aparentemente a menos heroica das qualidades, tão excluída do mundo do século XXI (e agora, durante a pandemia, a mais necessária). Aceitar o silêncio abissal do mundo, assim como aceitar o silêncio do analista e do analisando.

No caso do artista, mesmo assim, ainda que imerso na compreensão desse absurdo, dessa Coisa que nos atrapa, buscar compor a obra. Necessitamos da Arte, das censuras que ela pode ajudar a instaurar; a Arte, essa ponte com nenhum e com infinitos apoios, deusa apressada e sem nenhuma pressa. A Arte, este fruto da selvagem, inconsciente revêrie que nos faz suportar a angústia do infinito, sobreviver à consciência de estar no “at-one-ment” (Bion), aqui, agora, inteiramente imersos no turbilhão do viver.

Emily Dickson definiu a Fé como “uma ponte sem pilastras”. No quadro Pastoral, de Tarsila do Amaral, uma criança e um velho estão sentados em um banco branco sem apoio, um banco sem pilastras. Tendo em conta as roupas, poderiam ser uma criança do dia de seu batizado, ao lado do Avô.

Mas também poderiam ser a mesma pessoa sentada no banco da vida, da infância à velhice. O apoio desse banco sem apoio estará escondido no título Pastoral? Será esta pintura uma Carta pictórica que nos deixa Tarsila, nas vestes de pastora espiritual? Mas ainda há outro elemento inquietante que se soma, um macaquinho de madeira, um brinquedo, que poderia estar evocando a teoria da evolução do homem.

O melhor da Arte e o fundamental da Ciência brotaram da capacidade do homem de duvidar.

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