Maria Lúcia Verdi –
“A coisa mais fascinante sobre a poesia é que ela se recusa a fornecer um projeto para o ideal e constantemente nos perturba, assim, eu nunca consegui atingir o `objetivo`.”
“O meu balcão está no umbigo dela.” (Hu Xudong)
Conheci Hu Xudong (30/10/1974–22/8/2021) quando ele me visitou na embaixada do Brasil em Pequim, em 2001, querendo conversar sobre literatura brasileira, para ele então desconhecida, e sobre o Brasil, um território e uma realidade que desafiavam sua imaginação. Seu interesse era a literatura mundial, disciplina que veio posteriormente a ministrar na Universidade de Pequim (UP), onde se tornou Mestre em Literatura Comparada e Doutor em Literatura Chinesa Contemporânea. Era poeta e nos entendemos logo.
Graças a ele conheci jovens poetas jovens, confraternizei com eles em intermináveis jantares regados a baijiu - a aguardente chinesa feita de sorgo ou de arroz - e a contagiantes risadas, mesmo quando a mistura de línguas fazia de toda conversa uma louca colagem. Participei de vários festivais de poesia, em distintas regiões da China graças a ter sido introduzida a esse meio pelo Hu, jovem poeta que poderia ser meu filho.
Era tal sua curiosidade pelo Brasil que logo pensei na possibilidade de propormos à UnB que ele viesse como Leitor de chinês e cultura chinesa passar uma temporada no Brasil. Ele já sabia espanhol e inglês o que tornaria tudo mais fácil. Deu certo, e Hu passou quase dois anos vivendo na Colina, conhecendo Brasília e o Brasil. O trabalho de Hu na UnB estimulou o governo chinês a abrir o Instituto Confúcio naquela universidade.
Aprendeu português conversando com os colegas e as pessoas em geral, com quem interagia com facilidade e graça. Nesse período, eu na China, ele no Brasil, fui o pombo correio da correspondência importante entre Hu e sua namorada, com quem veio a se casar ao retornar para a China e com quem teve uma filha.
Nesse período (2001 a 2006) lutei, enquanto chefe do Setor Cultural de nossa embaixada, para que fosse aberto um curso de português do Brasil na Universidade de Pequim, o que veio a ocorrer após vários anos de visitas, almoços e jantares com o pessoal da UP, que resistia à ideia.
Tradicionalmente por lá se ensina língua nas universidades de línguas estrangeiras; iniciar um curso desse tipo na UP – o que já havia sido alvo de várias tentativas infrutíferas pelo Instituto Camões – era uma proposta por demais fora da tradição, e isto na China é complicado.
Acabamos vencendo e o presidente Lula inaugurou, em 2004, um Núcleo de Cultura Brasileira, formato e título que encontrei para burlar o “curso de língua”. Pouco depois de voltar para a China, após seu período no Brasil, Hu dirigiu o Núcleo e fez um trabalho notável junto com os professores que para lá foram enviados como Leitores.
Hu veio a ser, além de professor de Literatura mundial da prestigiosa UP e poeta, tradutor e crítico literário e de cinema, bem como foi apresentador de programa cultural televisivo. Perguntado sobre o cinema chinês dizia que os diretores Jia Zhangke e Jiang Wen, considerando que Zhang Yimou e Chen Kaige, mais internacionalmente conhecidos, deixaram de produzir grandes filmes devido às pressões políticas, bem como às complexas peculiaridades do mercado doméstico.
Em 2007, Hu publicou Uma paixão escondida no Brasil, livro que reúne crônicas e ensaios sobre o Brasil publicados no jornal com o qual colaborava em Pequim. Essa “paixão” do título pode (e deve) ser lida seja como uma paixão encoberta pela timidez própria do estrangeiro, como pelo fato de ter iniciado sua relação com a futura esposa quando aqui chegou, e ter tido de administrá-la com a ajuda dos meios eletrônicos.
Entre outros, Hu traduziu para o chinês poemas de Seamus Heaney, Ted Hughes, Czeslaw Milosz, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Mário Quintana, Ana Cristina César, Paulo Leminski. Sua antologia de poesia brasileira O jardim da literatura brasileira é indispensável para os alunos de português e cultura brasileira.
Modernistas – Fascinado pelos modernistas brasileiros e pelos seus herdeiros, sobretudo pela poesia concreta e poesia visual brasileira, deixou-se envolver por essa linguagem outra, que o surpreendeu radicalmente. Na entrevista que concedeu a Henry Siewierski, professor da UnB e também seu amigo, para o número especial dedicado à China da revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional, ele assim se refere ao livro que veio a publicar a partir de sua experiência brasileira, seu quinto livro de poesias, A força do calendário: “O título deste livro é {...} porque nos últimos meses da minha permanência no Brasil, costumava olhar frequentemente o calendário {...} Parece que existia uma força saindo do fundo do calendário, essa força estremecia o meu coração, perguntando: Onde está você?”
Além de sua estada no Brasil (2003-2005), foi professor pesquisador na Universidade de Iowa (2008) e Professor Visitante na Universidade Nacional Central de Taiwan (2010). Na antologia bilíngue New Cathay – Contemporary Chinese Poetry, editada por Ming Di, publicada pela Tupelo Presse, de Massachusetts, em 2013, lê-se na apresentação de Hu Xudong: “Ele é altamente considerado entre seus pares por seu senso de humor, sua ironia, observação perspicaz, imagética original e uso inovativo da linguagem. Ele é um dos mais interessantes poetas da China de hoje.”
Para os leitores interessados não apenas em poesia, mas na China e na recepção que a literatura universal tem tido naquele país, peço licença para transcrever trecho da entrevista de Hu, para a citada antologia New Cathay:
– Baudelaire Mallarmé, Valéry e os poetas surrealistas das tradições francesas influenciaram a poesia chinesa nas décadas de 1930 e 1940 e também na década de 1980, o que trouxe uma consciência básica da poesia moderna.
– Yeats, Pound, Eliot, Wallace Stevens e Auden, na tradição inglesa, influenciaram cada um dos poetas chineses de maneiras diferentes e em épocas diferentes, em termos da produção intelectual e criatividade em geral.
– Os poetas russos Akhmatova, Tsvetaeva e Mandelstam fortaleceram as expressões líricas na poesia chinesa. Trakl, Rilke e Celan, na tradição alemã, enriqueceram a ´profundidade` da poesia chinesa. Lorca e Neruda e outras vozes espanholas afetaram a apresentação emocional da poesia chinesa.
– Allen Ginsberg trouxe um impulso rebelde na década de 1980. Silvia Plath e outros poetas “confessionais” injetaram um forte impulso na poesia feminina chinesa, na década de 1980.
– Heaney, Milosz, Paz e Walcott ajudaram os poetas chineses a reajustar a relação entre realidade e imaginação, história e ética da escrita, modernismo e escrita contemporânea.
– Desde 2000, a poesia ocidental raramente teve um impacto global na escrita contemporânea chinesa. Sua penetração no discurso da poesia chinesa é principalmente local e até pessoal, às vezes de forma extremamente privada. Por exemplo, alguns poetas do Leste Europeu, como Zbigniew Herbert, Zagajewski e Tomaz Salamun, têm despertado grande atenção.
– Alguns poetas americanos que inicialmente não deixaram grandes impressões, ou tiveram apenas uma ligeira popularidade, estão agora se tornando grandes inspirações: Hart Crane, Frank O'Hara, Bishop e Ashbery. O mesmo acontece com os poetas não ingleses “esquecidos”: Cavafy, Machado, Vallejo e Yehuda Amichai. Eles atraíram mais interesse à medida que mais traduções foram aparecendo. Fernando Pessoa também tornou-se uma fonte pessoal de inspiração.
Último encontro – Encontrei Hu pela última vez na reunião do BRICS de 2017, quando a China propôs e realizou a primeira e única reunião do grupo que incluiu a literatura como tema, proporcionando amplos encontros, leituras e debates entre escritores e pensadores dos países membros. Iniciativa oportuna, fundamental mesmo, que deveria ser continuada. Fui um dos três membros da delegação brasileira nesse encontro, que contou com a contribuição brilhante dos professores Francisco Foot Hardman e João Cézar de Castro Rocha. Honrada com o convite, abusei da generosidade de Hu fazendo-o traduzir para o mandarim uma apresentação de quase trinta minutos sobre a poesia brasileira, dos primórdios aos dias de hoje. Além de ler os poemas dos meus notáveis conterrâneos, bem como os meus, ofereci livros de poetas brasileiros e vídeos da cineasta Maria Maia para a biblioteca da Universidade de Zuhai, que nos recebeu e hospedou impecavelmente, contando com o fato de estar ao lado da encantadora Macau.
A poesia de Hu Xudong foi traduzida para o inglês, espanhol e japonês. Recebeu os prêmios Rougang (2003) e o Liu LiÀn (1998), tendo sido publicada em antologias americanas, japonesas , e espanholas, além das chinesas. Foi nomeado um dos Dez Principais Novos Poetas da China.
Finalizo esta homenagem com minha tradução, a partir do inglês, de dois de seus poemas escritos no Brasil. No primeiro, publicado na referida edição especial da Poesia Sempre, nos últimos versos, Hu brinca com a proximidade, em chinês, do nome de sua terra natal BA SHU (em Sichuan) e o nome do Brasil, BA SHI. Em ambos, a estranheza e a proximidade dos signos brasileiros que o fascinavam, seja na rua ou na cultura letrada.
No título desta matéria nomeei Hu como “poeta do Tao”. Poeta do Tao no sentido de poeta do caminho, do caminhar, não em um sentido místico ou religioso. Poeta da surpresa frente às pedras do caminho, do encantamento frente às múltiplas faces do caminho e sua permanente mutação.
Colina
I
Todas as noites os carros trazem até aqui a tranquilidade
Perfumes desconhecidos enviam gente desconhecida
a rodas ocasionais para tomar um,
deixando solitário o cachorro,
que morde um pedaço de lua.
Até ele é desconhecido – Gustavo
ou Fernanda, abanando o rabo para mim.
Após o cachorro há o vento, após o vento a indiferença
filtrando-se no coração, devolvendo-me
a morna lua.
II
Alguém toca guitarra até desnudá-la,
outros caminham com as suas vozes,
parecendo caminhar para o outro lado do céu
Entre as vozes, uma risada me apaixona
mas a nuvem escura de dentro da risada
nunca ri.
Daqui, para a casa vizinha do vizinho –
há infinidades de vizinhos. O tempo hoje deverá ser bom –
o meu balcão está no umbigo dela.
O guarda diz boa-noite para alguém.
III
Oh, minha amada vindo da selva
poderá descansar após entrar no ouvido da noite.
Não há qualquer pássaro à noite, mas há uma cigarra
rastejando no segundo ponteiro do relógio
Cantando
Que horas serão por lá? Aqui na Colina, os poucos
prédios solitários não podem preencher meu pijama
Eu não sou o meu próprio magro corpo
Nem é o Brasil o oeste de Ba Shu
Mamma Ana Paula Também Escreve Poesia
Um cigarro de palha de milho na boca, ela me atira um livrão de poesias:
"Leia os poemas da sua mãe"
Isso é verdade, a mãe do meu aluno José
Dois Brasis no peito, uma América do Sul em seus bolsos,
Um estômago cheio de cerveja, surgindo como o Atlântico,
Essa mãe Ana Paula escreve poesia
No primeiro dia que a conheci, ela me levantou
no ar como uma águia
pegando um franguinho
Não sabia que ela escrevia poesia
Ela cuspiu em mim suas palavras molhadas, e esfregou
meu rosto com seus dedos de palmeira
Quando ela lambeu minhas orelhas em pânico
com língua de marijuana, eu não sabia que ela escrevia poesia
Todos, incluindo seu filho José e sua nora Gisele disseram
Ela é uma velha Flor Boba, mas ninguém me disse
que ela escrevia poesia
"Coloque meu professor no chão, minha Flor Boba!”, disse José.
Ela me soltou, mas continuou vomitando
Caralho, Caralho e agarrando Caralho
no ar, com os lábios
Olhei para ela
Para suas costas
Forte como urso peludo que mata
um touro, mesmo quando ela está bêbada, e eu entendi:
Ela Escreve Poesia
Mas hoje, quando acompanhei José até sua casa, e a vislumbrei deitada na piscina,
os quatro membros estendidos, fumando, não pensei Ela Escreve Poesia
Topei num rabo de cavalo
Um cara musculoso como Bob Marley, na sala de estar
Gisele me disse que esse era
o cara da sogra dela de ontem à noite
Eu não podia pensar, mesmo que você me colocasse
na frente do Exército Nacional da China e atirasse no meu pequeno
torso, que aquela Mamãe Ana Paula
escrevesse poesia. Mas Mamma Ana Paula
Mamma Ana escreve poesia Paula
escreve poesia
que arrota e peida
Eu folheei-o página por página
o livro de poesias da mamãe Ana Paula. Sim, mamãe Ana Paula escreve poesia realmente
Ela não escreve poesia gorda, poesia alcoólica,
poesia doidona, poesia sacana, ou poesia muscular sobre caras musculosos
Em um poema chamado "Três Segundos de Silêncio em Poesia"
ela escreveu:
"Silêncio em um poema
me dê um minuto e nele
posso tecer nove jardas de céu"