Maria Lúcia Verdi –
A pandemia mudou muita coisa
A pandemia não mudou muita coisa
Agora tenho faxineira de 15 em 15
sou quase autossuficiente no quesito limpeza-comida-roupa
Autossuficiência é difícil em país escravista
De 15 em 15 é mais fácil
não ter com frequência aquela pessoa que te ajuda mas que te conta
te conta a vida dela toda
Já há o que te contam na rua, no sinal de trânsito, no restaurante do lado de fora
o ar livre te protege de vírus, não das falas
Assim que foi boa essa mudança
apenas duas vezes por mês escuto de perto. No mais, imagino, recolho fragmentos de frases
Mas não sou uma sacana alienada. Só não tá dando pra só ouvir
falar da morte, de entubação, só ouvir falar da mesma coisa
A coisa
aquela que estava mais distante, a gente se distraindo
se distraindo dela
Se distraindo com outras coisas tantas
Mas ontem ela veio, a faxineira. E além de ouvir sobre o filho
diabético, deprimido, trancado no quarto, dizendo todo dia
Por que eu nasci
perguntando pra mãe todo dia por que eu nasci
além de ouvir sobre esse filho ouvi sobre a casa deles
meio lote em São Sebastião
Depois de ter o barraco invadido pelas chuvas por alguns anos
Tudo encharcado, uma trabalheira, um cansaço chegar em casa
encontrar tudo no meio d´água
Ontem, que alívio, descobriram que haviam construído em cima
de uma mina d`água
Ontem, que alívio, cavaram um buraco, colocaram um cano largo
agora a água da mina escoa direto pra rua, que alívio
Trouxe do supermercado um pacote de biscoito Princesa pra
ela, para os dois filhos dela, há outro
E acordei a noite toda lembrando da minha mão estendendo o pacote
Pros teus meninos, garotos gostam de biscoitos
E a minha cara sem graça, e a minha garganta seca
vendo o filho no quarto, a mina escoando
aquela mulher eficiente, forte, educada
falando do alívio dela