Maria Lúcia Verdi –
Após ler as matérias publicadas sobre a morte de Contardo Calligaris me veio o desejo de tentar dizer algo mais. Me chamou atenção que ninguém houvesse se detido sobre a última frase pronunciada por ele, segundo seu filho Max. Tendo sido aluno de Foucault, de Roland Barthes, e analisando de Lacan, com formação em epistemologia, literatura, filosofia, psicologia clínica etc, tendo clinicado em Paris e em Nova Iorque antes de se radicar no Brasil, qualquer frase dita é significativa e a última merece especial atenção.
Intelectual diversificado, romancista, ensaísta e até mesmo responsável por exitosa série televisiva, Calligaris sempre se serviu de sua própria vida e da vida de seus pacientes para escrever o que fosse, enriquecendo assim suas narrativas com o sangue do vivido.
Algo que me parece essencial no seu legado é a colocação reiterada sobre o sentido da vida. Segundo ele o sentido está na vida ela mesma, no seu desenrolar-se cotidiano, não valendo a pena buscar sentidos ocultos ou metafísicos, pois eles não existem. Este realismo me recorda a postura oriental, a do Taoísmo, a dos Koans do Zen budismo – o non-sense é o sense da vida. Assim como essa postura -provocadora, considerando nossa civilização cristã - que afirma a falta de sentido da vida, Contardo se pergunta sobre o que é o Bem. Neste tempo sem valores morais e éticos, pergunta mais do que pertinente.
Figura pública que comentava o Brasil e o mundo em suas crônicas na Folha de São Paulo, defendia o ódio como afeto salutar, desde que saibamos porquê odiamos nossos inimigos. Odiava nacionalismos, patriotismos e qualquer grande entusiasmo dos grupos - neles reside o perigo, afirma. Verdade incontestável que o afastou por muito tempo do país de origem, a Itália fascista. Alerta, também, para a sedução que os corruptos exercem, segundo ele admirados por terem poder.
Com pouco tempo entre nós escreve o livro Hello Brasil, onde coloca observações muito pertinentes sobre a cultura brasileira, mas, como confessa, possuindo um olhar ainda despreparado para toda a estranheza e complexidade brasileira. Não via, por exemplo, o que depois lhe ficou evidente, o fantasma da escravidão por trás de todas as práticas sociais.
Só com o tempo compreendeu a ambiguidade da voz brasileira, em que colonizador e colonizado podem compor uma perigosa fala, que se manifesta também em ações inaceitáveis. Interpreta o jeitinho brasileiro como uma forma de “resgatar uma subjetividade não reconhecida”, como um instrumento dos despossuídos da terra para se “virarem” em nossa sociedade que parece ser destinada a ser eternamente patriarcal, colonizada e injusta. Como De Gaulle, Contardo acredita que o Brasil será um país do futuro ainda por muito tempo.
Este homem brilhante se dizia um hedonista e defendia didaticamente a busca do prazer, tendo se casado oito vezes, por, segundo ele, acreditar no casamento. Confesso que gostaria de saber o que as ex-mulheres diriam sobre a convivência com alguém tão excepcional em tudo. Tão seguro de si que dizia não saber o que significa o ciúme.
Mas voltando ao início, à frase derradeira: “Espero estar à altura”. Estou há dois dias pensando nesta afirmação. Afirmação que contém uma pergunta. Vinda de quem veio é lícito indagarmos sobre estar à altura de quê, ou de quem. Na pergunta final, creio que personifica a morte. Embora ateu, se questiona estar ou não no nível de quem, ou do quê, o receberá. Tendo várias vezes mencionado sua descrença em uma vida além-túmulo, ou num Juízo Final, o que terá querido dizer este psicanalista? Além da obra escrita, Contardo Calligaris nos deixa este enigma sussurrado.