Maria Lúcia Verdi –
Mosquito, Leão de sete cabeças e La hora de los hornos. João Nunes Pinto, Glauber Rocha e Fernando Solanas. O mais antigo desses filmes é o de Pino Solanas (1968), que já havia visto Deus e o Diabo na Terra do Sol e admirava Glauber; o filme africano de Glauber (1970) é seu primeiro rodado no exílio; Mosquito é deste fatídico 2020, e é uma coprodução portuguesa-moçambicana.
Ver Mosquito, filme ganhador do 44º Festival Internacional de Cinema de São Paulo me levou a rever os outros dois, várias décadas depois. Mosquito ficou zumbindo na minha cabeça e fui reenfrentar o Leão. Após os dois, com a morte do grande cineasta argentino, Pino Solanas, resolvi rever seu antológico documentário sobre a luta contra o imperialismo e a situação da Argentina, no contexto dos países latino americanos, africanos e asiáticos na década de sessenta. Este filme de Solanas só pode ser exibido na Argentina em 1973. Nos cinco anos em que esteve proibido era projetado clandestinamente.
Essa trilogia de sangue escancara a triste verdade: a situação das ex-colônias não mudou de fato, embora as novas embalagens da sociedade do consumo e do espetáculo possam, por vezes, com a ajuda da mídia, obscurecer esta realidade. O genial didatismo marxista de Solanas e Octavio Getino (codiretor), ambos pertencentes ao grupo Cine Liberación; a alegoria transparente de Glauber; e a evocativa história do avô do diretor português (Nunes Pinto), nos fazem refletir para além das supostas verdades.
Neste momento, em que tentamos acreditar que a derrota de Trump signifique alguma esperança, é oportuno sentarmo-nos frente a filmes como esses. Franz Fanon, citado no La Hora de los Hornos diz: “Todo espectador é um covarde”. A sensação é que hoje, no cenário internacional, existem quase só espectadores, os atores sendo pouquíssimos e pertencendo à mesma troupe. Os dois filmes do século vinte se propõem como armas para a sonhada revolução, o filme deste século propõe releituras de conceitos.
Os três filmes, esteticamente muito diversos, trazem questões imensas e irrespondidas, a serem repensadas quando vistas neste século XXI, tão distante das utopias. Pino Solanas, no que ele chama de FILME-ATO, realiza uma poderosa colagem de textos e imagens para contar e provar, em capítulos (o documentário, é branco e preto, tem quatro horas), a necessidade da revolta popular, da revolução do sistema capitalista, a fim de transformar o mundo em ambiente mais justo e livre.
La hora de los hornos – O filme (foto, abaixo) é uma viagem em citações: imagens de arquivos, inserção de trechos de filmes de outros diretores (Leon Hirszman, Fernando Birri e outros), filmagens diretas de cenas de argentinos de todas as classes e caras, a emblemática propaganda norte-americana e sua ideologia, cenas que povoam o imaginário ocidental artístico e político, são intercaladas por textos de alguns dos maiores pensadores e heróis da descolonização, como Franz Fanon, Aimé Césaire, Jean Paul Sartre, Patrice Lumumba (natural do Congo), San Martin, Simon Ortiz, Perón, Che Guevara, Fidel Castro e outros.
Sete Cabeças – Glauber situa seu enredo no Congo, em Brazaville, e o desenvolve com personagens-tipo: Marlene, a besta-de-ouro da violência, que fascina e engana; o pregador místico iludido e contraditório (encarnado por Jean Pierre Leaud, ícone dos filmes de Godard e Truffaut) - (na foto, abaixo); o Governador alemão; o agente americano (“os povos desenvolvidos é que tem planificação econômica e técnica do mundo”); o português (o saudoso Hugo Carvana) colaborando com os demais e recitando trecho de Os Lusíadas; Dr. Xobu, o “burguês” do local, inocente útil, transformado em Rei graças à manipulação dos imperialistas, vestido como os brancos dos século XVIII, defendendo o “bom senso”, temendo a luta armada; os profetas da justiça que lutam pela libertação - o guerrilheiro latino-americano Pablo, capturado pelo padre-pregador, sempre com uma corda no pescoço tentando resistir, e Zumbi, liderança nativa (“sozinho não poderei fazer a união africana”). O cineasta brasileiro traz a visão do homem do terceiro mundo (o mesmo que analisa Solanas) sobre a sua condição, a partir de um olhar antropológico, respeitoso, sobre a população local; assim como em Mosquito, há cenas belíssimas de danças e rituais autóctones, inseridos nas atemporais paisagens africanas.
Mosquito – João Nunes Pinto traz história vivida por seu avô, em 1917: Zacarias, um jovem sonhador e patriota de dezessete anos, alista-se no exército português para lutar na primeira guerra e é enviado para Moçambique (seu sonho era ir para a França). Sua companhia o deixa para trás e, inicialmente, com a ajuda de dois africanos, inicia a pé um périplo de mil quilômetros, que fará sozinho, enfrentando todos os desafios físicos e mentais.
O embate e a difícil interação desse jovem europeu com uma natureza assustadora, bem como com as pessoas nativas, se faz a partir de sua postura de branco ocidental e colonizador, o Senhor. Embora iludido frente ao que é a guerra, e sem preparo para enfrentar a alteridade africana, o jovem soldado, salvo por uma tribo composta apenas de mulheres - os homens estão na luta ajudando os portugueses a proteger a colônia de eventual invasão alemã – interage com as nativas e, posteriormente, com um alemão a quem faz prisioneiro. A cena com as mulheres, bem como alguns travelings, remetem imediatamente ao Leão de Sete Cabeças; mesmo sem a imaginação semi delirante do filme de Glauber, Mosquito cita o Leão, como um pós-Glauber do presente século.
O impactante final mostra um rapaz português transformado pela experiência africana: reencontra sua companhia, é calorosamente recebido por companheiros que comemoram o fim da guerra e presencia (espectador) o massacre do seu prisioneiro alemão pelos soldados, sob os olhos do Sargento; afetado pelo que vê, afasta-se e o reencontra em meio à densa noite. O superior puxa conversa enquanto aparecem, por trás dele, os olhos de um animal. O Sargento, em pânico, ordena a Zacarias que atire, o que ele não faz. O jovem soldado português passa à ação e deixa que a natureza faça o que ele considera justo, após o massacre do prisioneiro alemão: que o leão se alimente do colonizador, seu compatriota.
As questões centrais dos três filmes são as mesmas: exploração imperialista, dependência econômica e cultural, o questionamento do que é a paz, do que é a guerra (ou a luta) justificadas. O filme argentino, realizado durante a ditadura de Ongania, coloca o panorama histórico em que se situa o país e se aprofunda na análise da oligarquia, das condições em que vive o povo, da intelectualidade distanciada do social, que não percebe o que significa o peronismo para o país. É doloroso pensar, após rever La Hora de los Hornos, que o pior ainda estava por vir naquele país amigo. O roteiro do filme brasileiro recria a situação universal das ex-colônias numa história ao mesmo tempo alegórica e paradigmática, uma realidade africana que espelha a brasileira, a latino-americana, a asiática de então. O filme português, num momento em que os documentários e os filmes feitos a partir de histórias reais estão tão valorizados, quase se constitui como um “romance de formação”, ficamos com vontade de saber o que terá acontecido ao avô de João Nunes Pinto depois do seu retorno a Portugal.
Por que ver\rever estes filmes? A resposta, embora a frase esteja citada no filme mais antigo, infelizmente ainda é válida: “Nestes tempos da América Latina, não há lugar para a passividade nem para a inocência.” Os tempos mudaram, a urgência é a mesma. Também porque trazem, no caso de La hora de los Hornos, uma radiografia dos anos sessenta e da formação e desafios argentinos frente às manipulações estrangeiras, sejam elas espanholas, inglesas ou norte-americanas; com filmagens e depoimentos importantes, tocantes, provocadores, em cada uma das sequências (autônomas) o documentário mostra a violência cotidiana exercida contra nossos povos, violência da qual nos damos conta cada vez menos. Solanas exibe, assim como Glauber, que o homem do terceiro mundo é um sub-homem para os países desenvolvidos, apesar de toda uma retórica ao contrário, que se desenvolveu posteriormente. Em um momento do filme se fala que “a monstruosidade se veste de beleza”, como a bela (e monstruosa) loira Marlene, do Leão glauberiano. A força das imagens, aliada à força das frases que as costuram, o ritmo, as músicas, reforçam a dor que sentimos ao ver, 52 anos depois, o quanto fracassou essa militância que afirmava: “A vitória dos povos do Terceiro Mundo será a vitória de toda a humanidade.”
Quando venceu o Festival de Pesaro, em 1968, Los hornos arrebatou a plateia, silenciada pela emoção frente ao longo close do rosto morto do Che.
Rever o Leão de sete cabeças é um mergulho na atualidade, no vanguardismo provocador do grande baiano, capaz de sínteses políticas narrativas e estéticas nunca igualadas em nosso cinema. A liberdade do estilo da direção de Glauber está homenageada e comentada por amigos e colaboradores no ótimo Claro, de Glauber, de César Meneghetti, que acaba de ganhar o Prêmio da Crítica de Melhor Filme Brasileiro, no citado 44º Festival de São Paulo. Retornar a Glauber, como fez César, como podemos fazer ao rever sua obra, é importante, assim como retornar a Pino Solanas.
Já o Mosquito nos traz diferentes perspectivas, polêmicas, sobre a relação colonizador-colonizado. Duas me parecem fundamentais, em confronto com o Leão: o fato de que não sejam traduzidas as falas das cenas (muitas e longas) dos africanos interagindo entre eles e com Zacarias, entendemos sem entender, ouvimos o som da alteridade e imaginamos o que dizem. Absoluto respeito frente ao outro e também absoluta consciência da dificuldade da comunicação verdadeira entre os homens. Tampouco é traduzida a fala do prisioneiro alemão. Belíssima a cena em que Zacarias e seu prisioneiro encontram um enorme rio doce à frente e, frente a esta inesperada alegria, abraçam-se. A não tradução das línguas é coerente com a complexidade que o nosso século XXI apresenta – nele tudo é traduzido pelo Google, tudo é facilitado; mas, se sabe, nada é verdadeiramente equivalente, nada é compreendido em sua essência de modo idêntico, pois o que o constitui um ser, um ente, uma cultura é a diferença. Um dos conceitos chave da luta pós-colonial dizia ser fundamental saber utilizar bem a língua do colonizador para vencê-lo, hoje uma das bandeiras é a resistência das línguas e dos dialetos.
Perspectiva essencial trazida pelo filme português é a existencial - “um filme de guerra sem guerra sobre um soldado sem exército”, como foi bem definido no Festival de Roterdã. Zacarias vive uma aventura formadora, radical, perde a inocência e termina por entregar seu querido Sargento ao leão; o argumento deste – que se justifica para o soldado, informando-o de que o exército alemão havia feito horrores na Europa - não convence o jovem soldado, que se atém ao indivíduo alemão, ao sujeito que havia abraçado frente a um rio doce, não aceitando seu massacre. Discutível? Atrevo-me a questionar se Glauber e Solanas estariam de acordo com a entrega ao leão.
A natureza, cada vez mais a causa pela qual lutar mais urgente do planeta, é a grande protagonista de Mosquito (cena inicial do filme, abaixo), ao lado do excepcional ator João Nunes Monteiro. A luta pela sobrevivência enfrentada por Zacarias, sofrendo malária (o mosquito do título) recorda a luta atual contra o vírus. A natureza é mais forte, é essencial defender sua biodiversidade para que o desequilíbrio não nos extermine.
Retornando ao comentário inicial sobre a eleição de Biden, esperemos que não provoque mais guerras, que o sofrimento que conheceu com as perdas vividas, aliado à formação multicultural de Kamala Harris sejam fortes o suficiente para enfrentar o Pentágono e a destruição ambiental do planeta.
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Veja aqui os links no YouTube para os filmes de Glauber Rocha e de Fernando Solanas. O filme Mosquito foi exibido no 44º Festival Internacional de Cinema de São Paulo, foi premiado, mas ainda não entrou no circuito.