Maria Lúcia Verdi –
Como parece ser generalizado, há algumas semanas venho pensando sobre o que tantos no isolamento referem: o mal-estar físico, a ansiedade, a angústia existencial, uma outra percepção do tempo, a crise criativa.
Coincidentemente, um amigo, com entusiasmo, comenta comigo (telefonicamente…), ter revisto 8 1\2 (1963), de Fellini. Revi-o, então, mais uma vez, bem como os principais filmes do Diretor e li o texto do Roteiro desse que era seu oitavo (8) e meio (1\2) filme – o episódio de Boccaccio 70 (1962) representado pelo 1\2. Roteiro que Fellini modificaria bastante durante as filmagens, sobretudo as (ótimas) falas dos personagens. Aos atores que sofrem pela falta de roteiro, ou roteiro modificado intempestivamente, Fellini responde: “E na vida, por acaso não é assim também? Será que eu sei pela manhã o que me acontecerá durante o dia?”.
O que me decidiu a tentar correr o risco de dizer algo sobre isso tudo que 8 1\2 representa, sobre o qual tanto já foi dito, foi a leitura do texto “O que é o contemporâneo?”, do filósofo italiano Giorgio Agambem, utilizado pelo amigo Pedro Alvim, professor do Instituto de Artes da UnB e pintor, em suas aulas. Nele, Agamben recorda Roland Barthes que sintetiza o pensamento de Nietzsche em “Considerações Intempestivas”, dizendo que o contemporâneo é o “intempestivo”. 8 1\2 ainda pode ser intempestivo para os jovens que o vejam - inesperado, surpreendente. Tendo experimentado LSD, sessões espíritas, além de análise freudiana e leitura de Jung, Fellini é um nosso contemporâneo, marcado pela consciência do fragmentário, pela tentativa de ver na escuridão de seu próprio tempo, como define Agambem o ser contemporâneo.
A crise do alter-ego do Diretor, o protagonista de 8 1\2, Guido Anselmi, interpretado por Mastroianni (na foto, abaixo), espelha-se na crise que está vivendo Fellini. “É a história daquele tipo que está nas Termas, um tempo parado da vida de um homem qualquer com os consequentes encontros, imaginações, mistura de recordações; em resumo, um pretexto para dar vazão a tudo aquilo que me tortura há anos.” Um homem qualquer? A vida da gente qualquer - tudo o que o protagonista Guido não era, assim como Fellini não foi – vinha sendo objeto de atenção e homenagem na obra do Diretor; porém, a partir da imersão no onírico e na leitura de Jung, e com a realização de 8 1\2, Fellini traz a dimensão plural e labiríntica que compõe a vida de um homem qualquer e dá um salto na história do cinema.
8 1\2 sucede a Dolce Vita consistindo, os dois, na virada estética de Fellini. O (especial) neorrealismo dos filmes anteriores, alguns emblemáticos como Os boas vidas (I Vitelloni), passa a dar lugar a um despojamento das máscaras, ao desvelamento (recriado pela fantasia) de uma história pessoal, memórias, sonhos, desejos. Fellini entende que ele é seu melhor personagem, múltiplo, fugidio personagem – “Conhece-te a ti mesmo”, dizia o oráculo há 23 séculos, na Grécia.
Com o filme de 63, Fellini produz um lirismo surrealista e\ou um realismo poético - aliado a uma busca desafiadora de falar do “real” (de mostrá-lo em seu fluxo inapreensível entre passado, presente e futuro), conceito que é questão central da filosofia e da psicanálise. “Não será um filme psicológico, não terá a cadência narrativa; ao contrário, assim espero.”
8 1\2 conta a história de um diretor de cinema em crise, internado numa clínica de tratamento (Termas). Crise absoluta – com o casamento, com o adultério, com a tradição católica, com o apego irrecusável à mentira, com a produção do filme imaginado. O mesmo está ocorrendo com Fellini ao tentar filmar 8 1\2, conforme revela a jornalista Camilla Cederna, que acompanhou as filmagens e escreveu o livro (Fellini 8 1\2, Ed. Civilização Brasileira, 1972) do qual retiro as citações do Diretor: “Mas sabes tu, afinal, quem fará este filme? […] e se, no final das contas, não se fizesse nada?” Confrontado com a complexidade de seu projeto, com a consciência (ou com a intuição) de que realizar “este filme” será desafio definidor em sua carreira, o Diretor, como Guido, se dilacera. Um dilaceramento que nunca é unicamente da ordem do trágico, sendo o humor elemento essencial na visão felliniana da vida. E este “quem?” de quem fará este filme, é o fio condutor seja do Diretor de 8 1\2, que do diretor do filme dentro do filme. Questão que ronda, mais que nunca, a todos nesse isolamento contemporâneo.
Diz Fellini: “Insisto em que o filme deve ser extremamente lindo, lúcido e transparente. Pensava em Botticelli.” Insiste com quem? Consigo e com os fiéis colaboradores, entre eles Piero Gherardi, responsável pela deslumbrante cenografia, que imagina a astronave do filme, construída a partir da Torre de Babel de Bruegel. A pintura – os renascentistas, os flamengos, os surrealistas -, sempre presente na fotografia dos filmes de Fellini, a partir de 8 1\2, me parece passar a ter papel preponderante em sua obra. A coreografia da câmera, entre uma imagem e outra, provoca continuado deslumbramento.
8 1\2, após todas as dificuldades, vem a ser eminentemente isto: um filme lúcido, além das demais qualidades com que sonhava Fellini. Não se trata, porém, da tradicional lucidez, mas, sim, da inquietante lucidez trazida pelo fio sutil e tremendo do inconsciente a se desdobrar ante nossos olhos atônitos.
A lucidez de Fellini em 8 1\2, guiada pelo imaginário, está em sintonia com o que diz o filósofo italiano no texto citado. Lembra Agamben que, ser contemporâneo, para Nietzsche, é ter uma dissociação, uma desconexão, uma distância temporal (intempestividade) em relação ao seu próprio tempo histórico, posicionar-se numa anacronia. Pergunta Agamben: “Mas o que vê quem vê o seu tempo, o sorriso demente do seu século?” E responde que o contemporâneo é aquele que vê a escuridão de seu tempo a interpelá-lo: “Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provêm do seu tempo.” Ser contemporâneo é não enganar-se com o que é aparentemente claro e verdadeiro.
Esse facho de trevas é o que Fellini consegue iluminar com seu 8 1\2, colocando luz nos distintos personagens reunidos nas Termas, na sociedade do seu tempo, que convive com as memórias e as fantasias do Diretor. Ao ver nas trevas, Fellini comprova sua contemporaneidade.
Fellini diz à Camila ter “a impressão de que não há necessidade de fechar nenhuma das histórias que contaremos.” Pois onde há fechamento, além do “viveram felizes para sempre” e da pseudo-literatura? E assim será, cada vez mais em sua filmografia: a abertura, o fragmentário como norma, a busca não de uma narrativa, mas do metro e da cadência da poesia. “A história não deve ter tempo real, desenrola-se numa espécie de dimensão flutuante.” As personagens são “projeções do personagem principal, ou até mesmo arquétipos fixos”. E continua a explicar à Camilla: “não me é permitido apresentar ao público, como direi, tiradas de introdução por conta de cada um, mas, ao contrário, todos devem ter faces que, mal surjam na tela, sejam como máscaras reconhecíveis instantaneamente.”
Transcrevo partes do texto final de Camilla, após ver a primeira projeção do filme: “[…] eis que, enquanto a orquestrinha do hotel toca a Cavalgada das Valquírias, tem início o passeio dos hóspedes das Termas, chapéus de renda, sombrinhas de seda, écharpes que ondeiam, freiras brancas ou escuras. É a sagração do branco e do negro […] Mas este não é um sonho. O sonho está lá, onde o protagonista fala com os seus mortos dentro e fora do sepulcro familiar; e, se a morte é o negativo da vida, o poder de evocação do filme mostra-se de tal forma impressionante que tudo, ao contrário, aparece esplendidamente real […] O mundo delirante do cinema está todo aqui, nessa insólita moldura, numa girândola movimentadíssima.”
Na página que antecede o Roteiro está escrito no alto: Filme cômico. As Termas-reconstruídas, como sempre no estúdio 5 da Cinecittà -, onde, de dia, transcorre o desfile patético dos hóspedes ricos e satisfeitos em busca da água salvadora que os fará viver por mais tempo, à noite elas “mudam de aspecto e o pavilhão central transforma-se numa espécie de grotesco night-club.” Cito o breve diálogo da cena de Guido conversando com um dos homens à mesa:
“PACE: A verdade é que hoje em dia a moda das mulheres bonitas acabou. Hoje exige-se também inteligência…
Guido, com uma de suas habituais intervenções pilhéricas, rebate.
GUIDO: Por favor não me fale de inteligência. Inteligência é coisa que se tornou difícil. Além disso, estamos rodeados de cretinos.”
Nas Termas, embora cercado de gente desconhecida e amiga, desde seu aleph particular, Guido luta com as imagens do filme que tem em mente, imagens que se mesclam com os acontecimentos factuais. Guido está a escutar seus fantasmas, a sonhar suas fantasias, assim como grande parte de nós, isolados, revendo nossas lembranças e fotografias, inseguros quanto ao futuro, escutando nossas distintas vozes continuamente.
Fellini disse ser “um grande mentiroso”, teria inventado toda sua biografia para poder fazer seus filmes. É verdade o que o mentiroso diz? Guido não consegue sair da rede de mentiras, desconhece a própria mulher, ao olhá-la de longe, quando ela vem encontrá-lo no set de filmagem (que é um “limbo cada vez mais inquietante”, como diz o Roteiro) lê-se: “Guido acompanha-a com o olhar, observando-a como se a visse pela primeira vez, como se observasse uma estranha”. Essa mulher, magnificamente encarnada por Anouk Aimée, escapa à compreensão do marido, como é da natureza do amor, uma permanente busca apenas iluminada, vez que outra, por um instante de epifânico encontro.
A amante (Sandra Milo), beleza de “almanaque antigo”, a la Rubens (como descreve Fellini) doce, receptiva como uma mãe – o contrário da esposa magra e racional – nem ela consegue ser plenamente o repouso do guerreiro. Guido, que se confessa um covarde à Cláudia, imerso em suas fantasias de domador de mulheres e dono de harém, continuadamente ligado às imagens do pai e da mãe, da infância idílica e persecutória - é Fellini que realiza sua autoanálise. Em A cidade das mulheres, Fellini irá fundo na sua questão com o feminino, o fascínio e o terror frente ao “continente negro”. (Freud).
No afastamento de quinze dias para recuperar-se do fígado, Guido submerge no inferno de seus pensamentos, que virá a resultar na “iluminação” produzida pelo compreender que talvez não seja necessário fazer o filme. Carini, outro alter ego do Diretor, no filme o crítico a quem Guido havia proposto colaboração, concordando com ele em que não vale a pena tentar terminar o filme diz: “…no fundo precisaríamos apenas de um pouco de limpeza, de desinfecção. Estamos sufocados pelas palavras, pelas imagens, pelos sons que não têm razão de existir, que vêm do vazio e vão para o vazio. A um artista verdadeiramente digno deste nome não se deveria pedir mais do que este ato de liberdade: educar-se ao silêncio. […] Recordas o elogio de Mallarmé à página branca? […] Se não se pode ter tudo o nada é a verdadeira perfeição. […] Destruir é melhor que fazer, quando não se criam as poucas coisas necessárias.” Desinfectemo-nos.
O gran finale de 8 1\2 é o desfile de todos os personagens comandados pelo mago-ilusionista, ao som do antológico Nino Rota, formando uma roda, todos de mãos dadas. Guido, serenado, aceitando o fracasso do filme e a si mesmo como uma “confusão” sem saída, murmura para si pensando em sua mulher e na amante: “Mas de onde vem este rasgo de felicidade que me dá força e vida? […] Peço-lhes perdão doces criaturas, não tinha compreendido, não sabia, como é certo amar-vos, aceitar-vos e como é simples…” E em seguida, com voz melancólica, diz: “A vida é uma festa. Vivamo-la.”
No Brasil, temos Hugo Rodas e José Celso Martinez com esse vigor felliniano, essa fé na poderosa festa ritualizada que poderá nos redimir, nos auxiliar a viver. Precisamos de muita pulsão de vida contra a avassaladora pulsão de morte da cena contemporânea. Precisamos de arte.
O intempestivo vem por todos os lados, de dentro e de fora. 2020 nos trouxe o vírus que ajoelhou o planeta. O lado iluminador da dolorosa pandemia pode ser fruído num isolamento que permita rever, reler, repensar, ressentir. Tudo é revisão, sem qualquer nostalgia, revisão como compreensão.