Maria Lúcia Verdi —
O artista visual Fernando Madeira é formado em arquitetura e restauração, nascido em Angra dos Reis e estabelecido em Brasília, onde é referência. Trata-se de um artista que consegue entrelaçar exemplar e esteticamente vida e obra, algo incomum.
Segundo a psicanalista Ana Vicentini de Azevedo, “o trabalho de Fernando Madeira torna visível a tensão temporal que preside o ato de avivar o passado [...] se presentifica [em sua obra] a saturna melancolia [...] Nessas formas grandiosas, monumentais, podemos ouvir o som melancólico de perdas transformadas em enigma [...]”.
Participaram desta entrevista o pintor e professor do Instituto de Artes da UnB, Pedro Alvim (PA) e Mariana Madeira (MM), filha do artista.
A seguir, a íntegra da entrevista:
Sua obra é marcada pela formação em arquitetura, especialização em restauração e o trabalho desenvolvido no Iphan. Percebe-se nela a objetividade e a subjetividade perfeitamente entrelaçadas no encontro com materiais e ruínas que são aproveitados resultando em um diálogo ao mesmo tempo participante e silencioso com o seu tempo e seu entorno. Tudo isso tem a ver com uma filosofia?
Fernando Madeira – Meu contato com a arte vem desde a infância quando observava com muito interesse os artistas viajantes que retratavam as ruas, os casarões e as igrejas de Angra dos Reis, cidade colonial onde nasci. Aos 7 anos, fiz meu primeiro álbum de desenhos a lápis de cor. Era um presente para minha mãe que comemorava seu aniversário no mesmo dia que eu, 14 de maio. Em uma comemoração de 7 de setembro, no Rio de Janeiro, aos 14 anos, desfilei com a escola em frente ao Ministério da Educação e Saúde, hoje Palácio Capanema. Foi uma experiência muito marcante. Fiquei impressionado pela beleza do prédio, a arquitetura, os painéis de azulejo, esculturas e jardins. Um deslumbramento mesmo! Um ano depois, visitei o Museu de Arte Moderna, provisoriamente instalado no mezanino daquele edifício. Outra surpresa, conhecer o acervo de arte moderna.
Fiquei dividido entre três escolhas profissionais: belas artes, arquitetura e agronomia. Optei por arquitetura, que considerei mais atraente e promissora para entrar no mercado de trabalho. Com isso, consegui minha independência financeira e saí da casa de meus pais aos dezenove anos, ainda no primeiro ano da faculdade. Como aluno, aprendi a desenhar e aquarelar modelos vivos e paisagens, tive aulas de geometria, perspectiva, desenho técnico; noções de proporção, além de cursos muito detalhados de história da arte e de história da arquitetura, disciplinas que, posteriormente, lecionei em duas universidades sem me adaptar à vida acadêmica.
Em Paris, durante a década de 1970, completei minha formação em urbanismo e em restauração de monumentos antigos, que demandava apresentações em forma de desenhos e pinturas. Em Paris, tive também a oportunidade de conviver com artistas e seguir uma rotina de exposições em museus e galerias.
A experiência de viver durante um ano em Nova York foi marcante pela convivência com artistas e pela efervescência do movimento artístico da cidade no final da década de 1970. Momento de auge da pop art, do minimalismo e das performances. Ali realizei um único filme de 12 minutos, em 16 mm, I love NY, uma homenagem à cidade.
Nunca houve conflito para mim entre arquitetura e a arte. Trabalho nas duas com o mesmo prazer, vivendo os impasses e dúvidas que se colocam ao arquiteto e ao artista. No trabalho artístico, há mais liberdade, apesar dos longos momentos de angústia ao terminar uma série até encontrar um novo caminho. Ele surgia pouco a pouco, foi acontecendo. A arquitetura, por ser utilitária, impõe mais limites e condições. Não sei bem se há uma filosofia, mas sinto que há uma coerência em minha história pessoal entre esses dois mundos: em ambos, há construção, projeto e ato construtivo.
A mostra “Conservar o tempo”, no Museu Nacional, ficou-me na memória como um grande acontecimento cultural desta cidade tão contraditória. Como é sua relação com Brasília?
F.M. – “Conservar o tempo” é o título de uma das 32 gravuras-não gravuras – série que fiz no início dos anos 2000, utilizando técnica mista, papeis usados para limpar as matrizes de gravuras em metal. Essa série surgiu quase como uma resposta a uma exposição que vi em Sydney e que me marcou muito, “De Whistler a Lucian Freud”.
Gravuras-não gravuras são composições de imagem e texto, reflexões, aforismos, dizeres que remetem às minhas inquietações sobre arte. A exposição do Museu Nacional é uma antologia, não uma retrospectiva, embora ali houvesse trabalhos do início de minha atividade como artista até as últimas obras.
O tempo é uma de minhas obsessões. Ele é intrínseco ao trabalho de restauro que pretende preservar e manter bens patrimoniais para as gerações futuras. O tempo do restauro é um tempo distinto dos tempos modernos. É um trabalho que quer estancar a velocidade do desgaste provocado pela ação do tempo.
Vivo em Brasília desde o início dos anos 1980. Vi a cidade pela primeira vez no ano de sua inauguração e percebi o que é erguer uma capital em tempo tão curto. Em ritmo veloz, a cidade até hoje se constrói e se modifica em todos os aspectos.
Minha relação com a cidade é contraditória, de perplexidade. O tombamento como patrimônio da humanidade consegue preservar o desenho urbano e frear um pouco a especulação imobiliária ao mesmo tempo em que cria enormes empecilhos para algumas alterações que se tornaram evidentemente necessárias. Tenho sérias críticas à cidade. As quadras comerciais, por exemplo, precisavam urgentemente ser remodeladas. Como nós mesmos, as cidades estão em mudança permanente.
Aqui passei a maior parte da minha vida. Tenho muita gratidão por esta cidade pois aqui iniciei minha trajetória como artista, trabalhei muito, aqui minha filha cresceu e estudou, meus netos nasceram, consolidei antigas amizades e fiz novos amigos.
Aqui também realizei uma antiga obsessão: tornar-me agricultor. Comprei uma fazenda em Goiás que obviamente não deu certo. Troquei-a por uma chácara, mais acessível e mais próxima de Brasília. Cultivei, plantei centenas de árvores e criei animais, experiência que durou quase 40 anos.
Hoje participo, embora de forma discreta, da vida da cidade. Frequentei ateliês e conheci artistas. Fiz muitas exposições e, pela primeira vez, tive meu próprio ateliê e pude desenvolver um trabalho próprio.
Em contraposição à escala exacerbada dos poderes – o que me incomoda! - descobri uma cidade dentro de um bosque, suas árvores retorcidas, suas florescências. Descobri também uma Brasília pequena nos papéis catados, nos restos encontrados pelos caminhos, nos pigmentos coloridos pela terra do cerrado, base para meus trabalhos, uma espécie de anti-monumentos.
(Pedro Alvim: “O trabalho de F.M. recoloca, de uma forma própria, a questão filosófica que busca por em relação termos como acaso e necessidade, ou liberdade e contingência. [...] Cada obra é como uma nave em trânsito, movida por uma permanente ressignificação das operações que a constituem, em direção a um ponto de chegada imprevisivelmente atrelado ao seu ponto de partida”.)
Dos anos iniciais para cá, como você vê as transformações mais importantes pelas quais passaram seu processo de trabalho e as questões que o motivam enquanto artista? O que mudou? O que permanece? Como relacionar essas mudanças com o que aconteceu à sua volta? (P.A.)
F.M. – Houve sim mudanças ao longo dos anos. No início, estive mais focado na pintura. Menos nas colagens e bricolagens. Era natural. Mais treinado como arquiteto, precisava encontrar um gesto artístico mais intuitivo, mais expressivo. Com o tempo, as exigências foram aumentando, demandando mais rigor e maior sofisticação. Os primeiros trabalhos são mais explosivos, mais espontâneos, talvez por isso mesmo mais fortes. Segue-se uma fase mais introspectiva, talvez lírica. Época em que trabalhava muito intensamente em restauro, projetos, dossiês de tombamento e obras. O sentido da construção, a arquitetura, permanece como o vetor dominante em todo meu trabalho. Surgiram diversos convites para participar de exposições coletivas. Momento de angústia em que não sabia bem onde queria chegar. Por acaso encontrei esta frase em um livro zen: “Caminhos, há caminhos mas ninguém para percorrê-los.” Com este insight, intensifiquei minhas andanças matinais e interpretei à minha maneira o aforisma: “Caminhos, gravetos, mistérios. Ninguém para percorrê-los e encontrá-los. Percorri. Encontrei. Mas não os desvendei” – título de uma das instalações que surgiram dessas andanças e que foram expostas em vários espaços em Brasília, São Paulo, Washington e Lisboa. Por último, pude dedicar-me mais inteiramente à arte e isso ficou refletido nos trabalhos mais recentes. Percebo uma utilização mais rítmica do desenho, uma harmonia maior nas colagens tendo, a pintura como acabamento. O trabalho passou a ser produzido com mais lentidão - menos afoito -, mais cuidado e mais tranquilo.
Como você percebe a relação entre o aspecto processual e o aspecto figural das obras? Como vivenciou, ao longo dos anos, nessa experiência de trabalho com as obras, a interação entre acaso e necessidade? (P.A.)
F.M. – Os primeiros trabalhos são figurativos, máscaras, retratos e seres mitológicos, com uma pegada surreal. Talvez por sofreguidão ou por necessidade, apesar dos erros, a mão parecia acertar e a mente aceitava. Não podia perder tempo com acertos. Os trabalhos saiam duros, fortes, muitas vezes errados, mas assim mesmo certos. O processo era “vamos fazer já” e a figura aparecia. Foi uma fase em que produzi muito. Em seguida, começo a recolher refugos das obras de restauração, em prédios e igrejas antigas de Goiás. Surgem trabalhos em técnica mista, assemblagens, colagens e pinturas. Pouco a pouco, há um abandono da representação que se acentua com o predomínio da colagem. Desde a escolha dos materiais - o gesto de catar papeis - vão surgindo formas e novas cores, uma ampliação da paleta anterior em que predominavam tons pasteis e terrosos. Colando, bricolando simplesmente, papeis e outros materiais, surgem formas e relevos; avançando, de acidente em acidente, acolhendo os acasos, os trabalhos vão se tornando composições mais abstratas, como em Peles ou em Texturas da memória, por exemplo. Acontece, de repente, que saídos dos fragmentos, objetos e seres se revelam, dissolvendo a distinção entre abstração e o figural. Outras vezes, como nas últimas séries Serras Gerais e Relíquias, os temas escolhidos já são um guia para a elaboração das obras.
Você é casado há 50 anos com Angélica Madeira, reconhecida professora e ensaísta e alguém que consegue escrever sobre sua obra ao mesmo tempo com sensibilidade e distanciamento crítico. O amor é fundamental?
F.M. – Entre nós sempre houve muito respeito em relação aos planos de vida de cada um, às trajetórias profissionais, onde morar, viagens. Moramos em diversos lugares, juntos ou separados, mas sempre nos encontrávamos. Passamos longos períodos longe um do outro, com a certeza de que isso não iria nos separar. Foi bom assim. Não me arrependo. Longe ou perto, ela estava presente em minha vida. Sempre a admirei, alegre, inteligente, sabe o que quer, cheia de ideias, generosa, meio mandona, meio complexo de rainha. Talvez por termos cada um de nós conquistado um jeito independente de ser, ela consiga se distanciar e escrever com isenção e lucidez. Amor é sim fundamental. Nunca pode faltar.
Nesta etapa da civilização em que há tanta luta para a inclusão dos diferentes, você poderia nos contar um pouco o que vem aprendendo com seu neto, o Ivan?
F.M. – Considero o Ivan, meu neto, uma pessoa muito especial. Não apenas por ser autista. Especial para mim. Assim também como meu neto mais novo, Diogo, também especial em um sentido diferente. Várias vezes os dois trabalharam juntos, no ateliê, lado a lado, na mesma prancheta, com muita harmonia.
Uma pessoa especial, quando encontra uma casa receptiva, aberta, consegue desenvolver suas habilidades e potenciais. Com o Ivan, desde muito criança, tenho uma relação que só aumentou em amor, entendimento, paciência e compreensão. Adoramos estar na companhia um do outro.
Admiro inúmeros aspectos de sua personalidade, sua pureza, sua alegria, sua elegância e a facilidade de contato humano. Ele tem dois interesses principais, a música e o desenho. É vocalista de uma banda de rock, a Time Out, e há anos frequenta meu ateliê. Trabalhamos cada um em uma prancheta, muito concentrados no que estamos fazendo. Eu mostro a ele papeis, pinceis, tintas, canetas e digo como utilizá-los. Nunca de forma impositiva. Ao terminar algum trabalho, discutimos e conversamos sobre o que estivemos fazendo.
Às vezes ele me pede para “consertar” o que ele acha que está errado. Após alguma insistência, interfiro minimamente: alguma sugestão de cor, um pequeno detalhe. Ele desenha e pinta com muita rapidez, deixando muitos trabalhos não acabados. Ele gostou da ideia de que eu pudesse reaproveitá-los, dizendo-me mesmo como utilizar aquele material por ele rejeitado. Isso resultou em uma série de obras de desenho-colagem-pintura e fez com que ele se interessasse pela colagem.
Realizamos alguns trabalhos em conjunto. Alguns deles hoje perdidos. Mas o mais importante de tudo é como o Ivan mudou radicalmente minha maneira de ver o mundo; trouxe uma compreensão de como pode ser transformadora e contagiante a experiência de seu convívio.
Aos 80 anos, tendo visto, vivido e produzido muito, como você vê este momento quase inqualificável que estamos vivendo no planeta? Como você lida com a renúncia?
F.M. – É realmente inqualificável esse tempo. Minha geração e mesmo a dos mais jovens não conheceram esse flagelo que atualmente está sendo experimentado no mundo inteiro. Parece estar havendo uma volta atrás. Muitos direitos já conquistados, sendo perdidos. Muita injustiça. A natureza sendo destruída. Muitas promessas não cumpridas. Muitas utopias abandonadas. O que fazer? O que podemos aprender com tudo isso? Renunciamos? Alienamo-nos? Chegou-se a um limite. Todos temos que renunciar alguma coisa. Agora sinto-me mais um espectador de meu tempo, embora mantenha um espírito inconformado, revoltado.
Nesse tempo, permaneço em casa, não trabalho. Ando apreensivo embora não esteja triste. Não sei quando poderei voltar ao ateliê. Sou disciplinado, fiquei mais paciente. Não concordo com o que está acontecendo. Não sou otimista nem pessimista. Vejo o mundo indo para o brejo. Será em breve? Gostaria de participar de uma utopia, uma mudança para um mundo mais igualitário onde não houvesse tanta discrepância entre a riqueza e a pobreza, um mundo menos destrutivo, mais amoroso. Será que nessa terra ou só em outro planeta?
Em que medida a prática espiritual influenciou o trabalho artístico e serviu/serve como fonte de inspiração para sua produção? (M. M.)
F.M. – Todo artista ao criar necessita concentrar-se. Seja poeta, músico, ator, arquiteto ou bailarino. Não há como criar sem estar muito focado naquilo que está sendo feito. No início, é preciso relaxar. Muitas vezes, ao chegar ao ateliê, sinto-me preocupado, confuso, com muitos pensamentos. Ponho-me em silêncio por alguns minutos esperando que se dissipem as tensões. Em seguida, começo a desenhar, a brincar com as tintas e papéis, querendo descobrir algum interesse naquilo. Às vezes surge alguma ideia que me interessa, uma pequena descoberta, um novo caminho. Esse simples treinamento da subjetividade tem um lado espiritual.
O ateliê é um espaço propício à criação: calmo, silencioso, voltado para as copas verdes das árvores, com boa música, cheio de livros e revistas de arte. Um convite à quietude, à permanência serena, à concentração. Erro muitas vezes, principalmente quando iniciei, há mais de 30 anos. Acostumei a aceitar o erro e reparei que muitas vezes o erro era um acerto.
Acredito que no conjunto de meus trabalhos, aqui ou ali, essa forma de espiritualidade pode estar presente, nas entrelinhas, embora não de forma muito explícita, em vestígios e detalhes. Em algumas séries crucificadas – como nas pinturas de Açougue barroco e Cães e festas (2000), ou ainda Árvores crucificadas que pintei nos anos iniciais, ainda na década de 1980 – os temas religiosos aparecem de forma mais nítida. As duas primeiras séries estão impregnadas de minha experiência no interior das igrejas antigas de Goiás e Tocantins onde trabalhei como restaurador. Elas trazem algo dos ex-votos e das pinturas toscas dos retábulos ou tetos, figuras um pouco deformadas, em tons de vermelhos terrosos, sob uma luz branca, lunar, meio mística. Já a série Árvores crucificadas tem a ver com uma sensibilidade e uma dor pela destruição da natureza: árvores pregadas em cruzes, madeiras calcinadas, sacrifício das árvores.
Recupero, conserto, reciclo, descubro, crio e ponho em cena ideias que sempre me fascinaram: a ação do tempo sobre coisas e pessoas, as ruínas, o envelhecer, o respeito à beleza daquilo que não tem mais serventia.