"A vida é de quem se atreve a viver".


Maria Lúcia Verdi: “O que é essa parcela do Brasil que, sem instrução, sem condições, sem direitos, consegue se posicionar em prol de um país democrático, que respeite os direitos humanos?”
As feridas abertas de um país doente

Maria Lúcia Verdi –

Escrever sobre o que não sei, escrever sobre o que me emociona, a completa imersão na alteridade. Tentar articular algo sobre o mergulho que é o filme Indianara, sobre os despossuídos da terra abrigados na Casa Nem, por iniciativa da prostituta trans e militante Indianara Siqueira, dirigido magistralmente por Aude Chevalier-Beaumiel e Marcelo Barbosa.

Tento encontrar palavras. Não saberia escrever uma matéria que dissesse além do que o filme diz, do que os releases e as premiações internacionais apontam. O filme me coloca perguntas talvez irrespondíveis, puro espanto.

O que são, quem são, as pessoas que Indianara protege, disciplina, conscientiza? O que é, quem é, esta mulher transexual que carrega as bandeiras mais difíceis, o que é este mundo em que ela se insere com orgulho e me provoca angústia, estranhamento, ao mesmo tempo em que me umedece os olhos, esse mundo visceralmente outro e espantosamente próximo.

Próximo porque fala do que sempre soube, do que se expõe mais e mais, ferida nojenta e (que eu esteja errada!) incurável de um país historicamente cruel e doente. O que sempre soube é do que é feito esse Brasil estratificado, retalhado, costurado à força, um Brasil que explode desgovernado e se expõe assustadoramente durante a pandemia. Morrem os que Indianara abriga na Casa Nem, seja onde for a casa. Morrem os negros, os índios, os de qualquer gênero que estão pelas ruas, pelas estradas, na floresta, nas prisões, os silenciados, os expropriados, os desconsiderados, os invisíveis.

O filme acompanha o cotidiano de Indianara e seu peculiaríssimo marido, sua luta em prol da parcela de nossa sociedade que, tendo apenas o corpo como meio de sobrevivência, vende-o e espera ter o direito de fazer isso sem ser perseguida e assassinada, como tem ocorrido aqui como em nenhum outro país.

Indianara e suas amigas participam dos protestos políticos contra o golpe, contra Temer, choram a morte de Marielle (que aparece discursando no filme), desesperam-se com a vitória do Capitão.        

O que é essa parcela do Brasil que, sem instrução, sem condições, sem direitos, consegue se posicionar em prol de um país democrático, que respeite os direitos humanos?  Quem são essas trabalhadoras do sexo que conseguem rir na miséria, que frente à ausência absoluta do que se considera básico para o desenvolvimento das capacidades humanas, afirmam sua humanidade, sua solidariedade?

O documentário se ocupa do presente da personagem, da figura engajada, revoltada, que nos faz lembrar personagens do Bacurau. O passado dela, curioso, contraditório, rico material filmográfico é brevemente comentado por meio de fotografias - o que importa é a pintura de uma ativista a questionar radicalmente não apenas conceitos como gênero e liberdade, mas abstrações como amor, ética e religião. Na crise atual enfrentada pelos relacionamentos, é tocante ver a honestidade, o bom humor e o companheirismo de Indianara e o marido Maurício. 

A edição do filme busca narrar livremente o cotidiano da protagonista, a cuidadosa fotografia nos insere na pele dela e de suas colegas, podemos quase sentir o cheiro daqueles corpos de sobreviventes. A cena final do filme, nas imponentes ruínas do prédio histórico apenas invadido, após a expulsão da Casa Nem da Lapa, tem a força de uma cena atemporal. Naquele prédio do Automóvel Clube, na Praça Paris, em 30 de março de 1964, João Goulart fez seu último discurso como Presidente. Indianara sozinha, dura e evocativa, a sonhar talvez uma revolução que nunca se fez em nosso atordoado país. Ou a antevê-la.
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Ficha técnica:
Título do documentário: Indianara
Duração: 1h24
Direção: Aude Chevalier-Beaumel e Marcelo Barbosa
Roteiro: Marcelo Barbosa, Aude Chevalier-Beaumel e Michele Frantz
Trilha sonora: Malka Julieta, Nicolau Domingues e Lucas Porto
Diretores de fotografia: Aude Chevalier-Beaumel e Marcelo Barbosa
Montador: Quentin Delaroche
(*) O filme já foi apresentado no festival de Cannes e em mostras no Brasil. Pode ser visto nas plataformas digitais Now, Google Play, iTunes, Looke, Vivo Play e Amazon. A partir de 5/7, estará disponível na plataforma Mubi em 195 países.

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