"A vida é de quem se atreve a viver".


Maria Lúcia Verdi: “Fiquei tocada por uma das mostras em exibição no MAXXI, a do artista italiano Diego Marcon (1985) - a brevíssima videoinstalação ´Ludwig´, feita por computação gráfica”.
O futuro do passado

Maria Lúcia Verdi –

Um avião em que se bebe champanhe, Caravelle
                                        (Pier Paolo Pasolini, tradução Maurício Santana Dias)

 Um avião em que se bebe champanhe, Caravelle
cujo comandante anuncia voar
a uma média “efetiva” de oitocentos quilômetros por hora.
Estou praticamente imóvel, bebendo champagne
(servido com mais abundância em minha taça
por prestígio literário): e sei que não tenho
"efetivamente” nenhum livro em mente, nenhuma obra.
Sou desigual ao que “praticamente” sou,
se fui feito para permanecer aos pés do mundo,
e não aqui, entre os ricos, num Caravelle
que mistura Corfu à Terra dei Mazzoni
(lá embaixo, salpicada de nuvens),
a Roma, com o Tibre como um dos mil Jordões.
Devo voltar a ser pobre? Desconhecido? Menino?
Não sei, “efetivamente”, ser pai, patrão.
É ridícula minha influência, minha fama.
Pai, o que está acontecendo comigo?

Pasolini e a militância artística. Pasolini e a paixão pelo presente. Pasolini e as utopias, o fim do capitalismo sangue-suga. Pasolini e a consciência crítica. Pasolini num tempo passado, duplamente distante graças a um vírus.

Voltava a Roma após quase vinte anos, tendo lá vivido por memoráveis cinco anos e meio, presente e passado entrelaçavam-se. Queria conhecer algo novo, o museu das artes de um futuro que se imaginava para o presente século - o Museu das Artes do Século XXI, MAXXI, projeto da iraquiana Zahra Hadid, primeira mulher a ganhar o Prêmio Pritzker de arquitetura, o Nobel da área.

Depois de ter só caminhado nos primeiros dias de reencontro, para chegar ao afastado bairro onde se construiu o museu queria percorrer as ruas de Roma de ônibus, rever ao máximo e lentamente os espaços, as construções, as gentes. Roma, que durante o confinamento, vazia, revelou com dor sua eterna beleza. Dois anos antes do doloroso deserto imposto pela pandemia, por uma hora, revi Roma em seu movimento habitual, a alegre cantata das ruas que atualiza(va) as construções legendárias. O filme à minha frente, era só gravar com os olhos.

Ando em ti, Roma de altos ciprestes e largas águas,
como atrás de mim mesma

...

Ando em ti, Roma dos altos sonhos e das largas ruínas,
como atrás de mim mesma,
atrás de um outro destino.
Ando, ando, ando
e sinto a extensão de meus antigos muros

...

escuto a longa turba mitológica
                                       (Cecília Meireles, Caminhante)

Estava curiosa por ver, pela primeira vez, um projeto de Hadid, iraquiana sediada em Londres, influenciada por suas raízes árabes e pela Bauhaus. Sim, os volumes, a surpresa da fluidez do jogo entre eles me impressionou, mas fiquei mais tocada por uma das mostras em exibição, a do artista italiano Diego Marcon (1985) - a brevíssima videoinstalação “Ludwig”, feita por computação gráfica.

Andar devagar pelo corredor todo negro que levava à instalação, escutar num crescendo a ária cantada pela voz angelical de um menino, evocando os castrati de outros tempos e chegar à sala dominada pelo imenso telão imerso no escuro. Luzes rápidas de raios cortando a escuridão e outros sons que não o da voz, me adentravam na tempestade. Mas resplandecia a figura de um belo e irreal menino.

Dio come sono stanco\mi sento proprio giù\ Vorrei tirar le cuoia \ e non pensarci più\ e pur... Deus como estou cansado\ estou mesmo na pior \ gostaria de chutar o balde \ e não pensar mais nisso... no entanto (tradução livre aproximada).

No entanto. Assim acabava a letra da música cantada pelo pequeno Ludwig. Queria acabar com tudo, no entanto. Com uma pequena vela na mão, o menino tentava impedir que a chama se apagasse com o balanço de um navio, em meio à tempestade. Só, na escuridão do porão, ele protegia a velinha e sua chama. O medo, uma situação incontrolável e a companhia do Deus que ele evocava cantando.

Era para ter sido melhor que os outros o nosso século XX.
Agora já não tem mais jeito
Os anos estão contados,
Os passos vacilantes,
A respiração curta.
Muita coisa já aconteceu,
Que não devia acontecer,
E o que devia ter sido
Não foi                              
                         (Wislawa Szymborska, Declínio do século)

Antonio Vieira escreveu, no século XVII, História do Futuro e por todo lado, até entre nós, há os que tentam pensar essa questão, esse paradoxo. Desde alguns meses a pergunta Onde estamos é o cantochão que nos acompanha, o conceito de futuro parecendo não fazer mais sentido. O non-sense do presente, sobretudo se olhado desde nosso inimaginável Aleph (o conto de Borges, sempre ele) nacional, justifica repetir Dio come sono stanca; Pai, o que está acontecendo conosco?

Roma

as águas os monumentos
construções que se esforçam
por evocar por simular
o esplendor da vida
o movimento das águas
o som
o rumor
da vida
em boca de leões
peixes
ninfas
deuses
centauros
todos eles mudos
surdos
aflitivos
no esforço da comemoração
da vida
                        (MLV)

Mas esta é uma matéria mais intuída que pensada, valerá se a ária, que pode ser vista e escutada neste link – clique aqui –  afagar corações doloridos. E se os que não conhecem a obra da notável autora do MAXXI forem atrás. E se alguns forem reler\rever Pasolini e sua resistência e denúncia. Que essa tragédia chegue a um nível bem menos trágico o quanto antes e que possamos testemunhar este momento.

Para mim, o mais importante na tragédia é o sexto ato:
o ressuscitar dos mortos nos campos de batalha,
o ajeitar das perucas e dos trajes,
a faca arrancada do peito,
a corda tirada do pescoço,
o perfilar-se entre os vivos
todos voltados para o público
                         (W. Szymborska, Impressões do Teatro)

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