Maria Lúcia Verdi –
O baiano Geraldo Prado, Alagoinhas, ou Mestre Alagoinhas, às vésperas de seu aniversário de oitenta anos, concede esta entrevista que publicamos hoje, neste simbólico de 1º de Maio, dia que, em 1886, em Chicago, pela primeira vez na História, os trabalhadores organizaram uma greve geral em defesa de seus direitos.
Alagoinhas é exemplo de luta e perseguição de um sonho. De retirante a operário, até chegar a ser doutor, sua vida se desenvolveu entre os livros e a luta por um ideal difícil de ser alcançado em nossa sociedade – a melhor inserção social por meio da cultura.
Hoje, conhecido como o criador da maior biblioteca rural do mundo, instalada no vilarejo de São José do Paiaiá, no interior da Bahia, Geraldo já despertou a curiosidade de Jô Soares, que o entrevistou, bem como do Museu da Pessoa, museu virtual criado em São Paulo para registrar histórias de vida notáveis.
A seguir, trechos principais da entrevista:
Maria Lúcia Verdi – Geraldo, sua vida de lutas pode ser um exemplo para as crianças brasileiras como a de alguém que lutou por um sonho. Como foi sua primeira infância?
Mestre Alagoinhas – Até a minha pré-adolescência eu era um menino que vivia descalço, correndo por dentro da caatinga com um apito de madeira na boca, imitando o canto dos passarinhos e catando frutas nativas. Quando chegava às tardezinhas recolhia as cabras do meu pai. De manhã cedinho buscava água na fonte num jumento com uma cangalha e quatro barris de madeira.
Sobrava muito pouco tempo para brincar com minha bola feita de panos velhos, no terreiro da minha casa, com os meus colegas vizinhos, em noites de lua cheia. Gostava de viver naquela natureza que não me oferecia nenhuma perspectiva diferente para a futura vida de menino matuto, mas sonhava em ter dinheiro igual ao seu André Bernardes, o homem mais rico da região. Imaginava que plantando moedinhas na terra, da mesma forma como se plantava milho e feijão, poderia ficar rico.
Passei todo esse meu primeiro “tempo de espera” à espera de algo novo que pudesse acontecer. Minha avó, que me contara histórias sobre índios, escravos e histórias de Trancoso, na rede ao lado da sua cama, havia falecido quando eu tinha oito anos. Enquanto isto a minha mãe coava café para os adultos e servia doce de mamão verde para as crianças.
Eu sonhava em ser doutor por causa da roupa branca do médico dr. Luís Passos. Certa noite, depois que o dr. Luís e família voltaram para sua casa, perguntei ao meu pai se ele não poderia me fazer doutor, mas, carrancudo como era, me repreendeu e a minha mãe repetiu o que ele disse: “ser doutor é só para ricos e esse seu sonho de querer ser doutor era coisa de gente besta, pois o doutor que o pobre é, mesmo, é doutor pé de cama, é doutor urinol”. Terminei o curso primário, mas não deu para continuar fazendo o ensino secundário em São José do Paiaiá porque não havia colégios e a minha recém-viúva mãe não tinha condições financeiras para me mandar estudar em Alagoinhas ou Salvador.
E a decisão de ir para São Paulo, como foi a adaptação?
Menino, eu via, diariamente, dezenas de caminhões com as carrocerias cobertas com lonas e com tábuas transversais servindo de bancos, passarem pelo Povoado de São José do Paiaiá lotados de pessoas que migravam, algumas cantando outras chorando ou rezando, rumo aos Eldorados de suas imaginações. Contra a vontade de minha mãe, decidi ir para São Paulo com meu tio. Lá, meu primeiro emprego, como porteiro e faxineiro, durou um ano e quatro meses.
Minha primeira habitação foi um espaço de cerca de três metros quadrados na parte de cima do prédio onde trabalhava, na casa das máquinas dos elevadores. Ali passei a morar com o sobrinho do meu cunhado que trabalhava à noite como segurança de uma grande empresa. Das 18h às 23h ficava na portaria e antes de ir dormir retirava o lixo do prédio. Uma vez por semana o meu parceiro de quarto tinha folga do trabalho e ia dormir na minha cama. Nessas noites, eu improvisava uma cama feita com caixas de papelão e cobertor com jornais e, da meia noite até às 6h, dormia no fétido depósito do lixo do porão do edifício, dividindo espaço com ratazanas.
Como era estudar enquanto trabalhava nessas condições?
Vivendo aos trancos e barrancos, consegui dar início à realização do sonho de menino da roça. No horário da minha folga, das 16h às 18h terminei concluindo, em um ano e quatro meses, o curso ginasial através do exame de Madureza. Destaco que, entre as várias pessoas que passaram por esse processo do Madureza, está Florestan Fernandes, do qual fui aluno na disciplina Revolução Brasileira, no curso de Ciências Sociais da USP.
Em seguida, consegui ser aprovado para office-boy na Companhia de Seguros Atalaia, na mítica Av. São João, próximo ao Cine Olido, onde nos finais de semana e feriados ia assistir filmes de bang-bang, Mazzaropi e de vários outros gêneros. Esse emprego foi de grande valia, com ele tive, pela primeira vez, Carteira de Trabalho com emprego registrado.
Em julho de 1963 sai da Companhia de Seguros e fui trabalhar como auxiliar de almoxarifado na metalúrgica Braseixos Rockwell, em Osasco.
No primeiro semestre de 1964 fiz cursos técnicos no Senai, o que contribuiu para minhas promoções. Trabalhava durante o dia na metalúrgica e à noite ia para São Paulo assistir aulas no pré-vestibular Di Túlio, na Liberdade. Permaneci trabalhando nessa empresa até setembro de 1967, quando fui despedido por estar envolvido com a campanha de uma das chapas à presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco, que fazia oposição à diretoria pelega, que desde 1964 havia sido empossada por uma articulação entre os militares, patrões e o Sindicato dos Metalúrgicos da cidade de São Paulo.
Tomei coragem e fui até a antiga Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da USP, na Rua Maria Antônia, onde me inscrevi em Estudos Orientais, no curso de Português-Chinês, que dispunha de 30 vagas e teve, naquele ano, somente a mim de candidato. Fui aprovado, entrei na USP no início de 1965, começando assim a abrir um estreito caminho. No início de 1968, dois anos depois de entrar no Curso de Estudos Orientais passei, por transferência, para o curso de História, onde me formei em junho de 1972.
Durante os dois anos de Estudos Orientais fazia matérias optativas em Ciências Sociais, Filosofia, Geografia, Letras, Cinema e participava de vários cursos das férias.
Como era cursar faculdade e viver na USP na década de 70?
Assim que entrei na USP fiz inscrição para morar no Conjunto Residencial da USP (CRUSP), mas naquele momento não dei muita importância pra essa questão pois ainda estava trabalhando na Braseixos e o trabalho começava às 4h30, melhor era ficar morando na famosa pensão das moscas do seu José Mineiro, a dois quarteirões do trabalho. Ao ser demitido da Braseixos, em 1967, nem voltei a fazer nova inscrição pro CRUSP porque já estava enturmado com a estudantada que morava lá, com quem fui morar como clandestino até o fatídico 17 de dezembro de 1968, quando todos os moradores do CRUSP foram presos e expulsos pelo Exército.
A década de 1970 começou com o aumento violento da repressão aos movimentos estudantis e sociais, pessoas físicas (inclusive eu) sob as ordens de um elemento chamado Carlos Alberto Brillhante Ustra, ídolo declarado de um desequilibrado presidente. Vimos amigos/as serem assassinados/as nas ruas e em várias partes do país pela polícia criminosa da ditadura. No meio dessa situação caótica, sou aprovado para minha primeira tentativa de mestrado, no programa de Pós-Graduação de História Social da USP sobre cultura brasileira.
Fiz os créditos trabalhando como professor a título precário, como a gente se classificava na época, pois os concursos para o magistério estavam proibidos. Tínhamos que apresentar toda a documentação e ainda mais uma “folha corrida” tirada na polícia para ver se não constava registro de prisão. Algumas diretoras aceitavam que colegas ficha limpa fizessem as inscrições, assumissem as aulas e repassassem-nas para àqueles/as considerados/as fichas sujas.
Apesar de toda a dedicação da minha orientadora do mestrado e enfrentando o problema com trabalho, não tive condições de concluir minha pesquisa - era dificílimo conseguir bolsa de estudo da Fapesp, a única agência de fomento à pesquisa em ciências humanas na época. O prazo para apresentar a dissertação venceu e o meu mestrado gorou.
Depois desse projeto de Mestrado cancelado fui refletir. Em que uma projetada dissertação sobre literatura iria contribuir para a sociedade brasileira, vivendo os horrores que estavam acontecendo no Brasil? Nesse impasse, fiquei sabendo de um edital aberto no mestrado de Antropologia na PUC/SP. Havia cursado uma disciplina optativa, na graduação, com o professor Roque de Barros Laraia, na USP, sobre as religiões indígenas no Brasil, com destaque para os índios Apapucúva-Guaranis, da cidade de São Paulo. Me inscrevi para seleção na PUC e passei.
A ditadura começava a ficar um pouquinho mais branda, as manifestações estudantis começavam aos poucos a se organizar nas universidades. As associações científicas, especialmente a SBPC e outras associações de classe menores também estavam ampliando os debates em todos os campos científicos e os sindicatos operários também voltaram a liderar greves e assembleias da categoria. Aconteceram as grandes greves operárias do ABC Paulista, Osasco/SP e Contagem/MG, culminando com a Assembleia Operária do ABC Paulista em 13 de março de 1979 que revelou o Lula como a grande liderança operária e política de todos os tempos no Brasil.
E a experiência de viver no interior de São Paulo, o que ela trouxe?
De 1973 a 1976 residi no interior, onde havia conseguido dar aulas no Colégio Estadual de Pariquera-Açú, Vale do Ribeira. Essa mudança para o interior foi exatamente na época da epidemia de meningite e as pessoas mais atingidas eram as do meio rural. Essa cidade tinha, e continua tendo, um Hospital Regional criado pelo então governador Ademar de Barros, para quem, apesar de já ter morrido, era normal encontrar, na apuração das eleições, um votinho aqui outro acolá.
O colégio no qual eu trabalhava era dirigido por uma ex-professora dos Colégios Vocacionais de São Paulo que já tinham sido fechados pelos governadores do Estado com aval dos marechais de Brasília. Juntamos uns três professores mais progressistas, fizemos um convênio com o hospital local e criamos o Programa de Educação e Saúde cuja supervisão ficou sob a responsabilidade de dois médicos recém-formados do Departamento de Medicina social do Hospital das Clinicas de São Paulo.
Nos reuníamos periodicamente na Delegacia de Ensino, da cidade de Registro, que sempre convidava algum especialista para conferências. Numa dessas, reencontrei o dr. Antônio Sergio da Silva Arouca, presidente da Fundação Oswaldo Cruz do Rio de Janeiro. Dr. Arouca e eu nos conhecêramos no movimento estudantil dos anos 60, ambos membros da União Estadual dos Estudantes de São Paulo. Ele pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) e eu pela Dissidência, atuando no movimento estudantil de São Paulo, cuja liderança principal era o Zé Dirceu, e a liderança máxima da organização, já na clandestinidade desde o golpe civil-militar de 1964, era o Carlos Marighela.
Uma das minhas atividades na UEE era projetar filmes de 16 milímetros antes de começar as assembleias que tinham sempre como participante ativo o nosso líder Zé Dirceu.
O Arouca me perguntou se eu não tinha interesse em morar no Rio de Janeiro. Ele minimizou o problema de emprego, dizendo que precisava de uma pessoa com o meu perfil para atuar num programa que havia criado na Fiocruz: o “Programa de Estudos Sócio Econômicos em Saúde - PESES”. Nele, me encaixou, para trabalhar com o grupo de estudos sobre educação e saúde no meio rural. Isso era por volta de 1976 e o programa durou até 1978, quando houve uma segunda grande crise na política nacional de saúde. Essa crise me jogou mais uma vez no “olho da rua” sem ter, às vezes, dinheiro para comer um sanduíche num botequim qualquer. Saía diariamente caminhando pela cidade do Rio de Janeiro em busca de algo que pudesse acontecer comigo.
E a batalha pelo mestrado, estando desempregado?
No Rio, ia quase que diariamente à Biblioteca Nacional ler jornais e ver se nos anúncios aparecia alguma coisa pra fazer. Num daqueles dias que passava lendo na Biblioteca Nacional, reencontrei um velho amigo gaúcho com quem dividira a casa no Morro do Querosene, em São Paulo, depois que fomos expulsos do CRUSP. Contei-lhe resumidamente a minha situação e ele me disse: “Alagoinhas (era assim que muitos me chamavam em São Paulo), vou te contar uma coisa e acho que você vai gostar. Virei professor da FGV e estou lecionando num mestrado de Desenvolvimento Agrícola no Horto Florestal.”
Entusiasmado, me contou que era um baita convênio entre a FGV, a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e o Horto Florestal, financiado pelo Instituto Ibero Americano de Ciências Agrárias (IICA), da Costa Rica. Esse mestrado, explicava ele, “tem bolsa para os quatro primeiros colocados”.
Graças a um amigo tive aulas de inglês e estatística, matérias da prova. Nos três meses, entre a inscrição e a realização das provas, fiquei enclausurado, tomando dinheiro emprestado a um e a outro, inclusive a minha namorada da época. Valeu, pois fui aprovado. Durante o curso tivemos muitos contatos com o CNPq que ainda tinha uma grande parte no Rio de Janeiro e estava elaborando o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND). Numa daquelas intermináveis reuniões uma senhora informou que o CNPq estava contratando consultores em todas as áreas. Terminei me inscrevendo para ser consultor na área da agricultura. Marcamos a entrevista e lá fui cheio de medo, mas com um pouco de confiança.
Fui entrevistado pelo Superintendente de Desenvolvimento Social em menos de 15 minutos. Voltei pra casa bastante triste pensando que não iria ser aceito. Passei no bar, tomei uma cerveja e rumei a pé para Santa Teresa, ansioso para saber a resposta. Uma semana depois recebi uma carta solicitando meu comparecimento ao CNPq para assinar contrato como Consultor.
Pouco depois, um Superintendente de Desenvolvimento Social do Conselho me convocou para uma reunião, na qual perguntou se eu gostaria de ter um contrato definitivo, na condição de ir trabalhar em Brasília. Respondi na hora que aceitava. A entrada no CNPq e a mudança para Brasília facilitaram muito a minha vida, pois além de liquidar a dívida acumulada, dei um grande avanço na minha dissertação adaptando os seus objetivos aos resultados do meu trabalho. Dessa forma, três anos depois marquei a defesa e foi aprovada. Com o diploma de Mestre nas mãos, apresentei-me à seção de Recursos Humanos e recebi o reajuste devido no salário.
E não seria suficiente, ser mestre e funcionário do CNPq?
Não, o meu sonho não estava completo. Queria fazer o Doutorado na área de Desenvolvimento Agrícola, a qual, por ser uma área ainda em formação, só tinha um programa específico nos cursos de Ciências Sociais da USP e da Unicamp. Conversei com o professor Milton Santos, da USP, apresentei-lhe um projeto contemplando, em parte, o tema de Geografia Agrária e Tecnologia, e lhe perguntei se poderia me orientar, o que aceitou de imediato.
Mas nessa época, fui transferido de Brasília para trabalhar como coordenador do Programa de Ciências Humanas do CNPq para o Nordeste, alocado na recém-criada Agência Regional em Recife.
Quando recebi a carta da USP confirmando que eu havia sido aceito pelo professor Milton Santos, fui pessoalmente a Brasília conversar com o então Presidente do CNPq, que encaminhou a minha solicitação para o setor de Recursos Humanos. Mais ou menos dois meses depois de ter começado as atividades do curso, recebi o comunicado do CNPq liberando a minha ida para São Paulo nos dias de aulas, com a passagem de ida e volta no trecho Recife-São Paulo-Recife por minha conta. O salário que estava recebendo não permitiria que fizesse esse “sacrifício”. Desisti e escrevi ao Professor Milton pedindo-lhe desculpas e liberando também a vaga.
Fui para o Recife, onde vivi quatro anos, e depois voltei para o Rio de Janeiro para compor o Grupo de Estudos sobre a História da Ciência no Brasil, que deveria aperfeiçoar o projeto de um astrônomo (que prefiro não nomear) do Observatório Nacional de São Cristóvão/RJ, sobre a criação do Museu de Astronomia e Ciências Afins. Este senhor surrupiou-me uma antologia de textos de jornais e revistas — sobre a passagem do cometa Halles pelo Brasil no início do século XX – publicando-a no Jornal do Brasil como sendo de sua autoria. Nas linhas de trabalho desse Grupo de Estudos havia uma onde eu me enquadrava que era estudar as influências da passagem do mencionado cometa na agricultura brasileira, a partir da literatura de viajantes no Brasil nos séculos XVI e XVII. Não conclui nenhum estudo sobre esse tema enquanto estava nesse grupo de estudos, mas desenvolvi-o na minha tese de doutorado.
Ao deixar o Núcleo de Estudos em História da Ciência fui trabalhar na Agencia Regional do CNPq, no Rio de Janeiro, onde desenvolvi um projeto que foi a menina dos meus olhos por muito anos: a criação do Centro de Formação em Artesanato, implantado na cidade do Santa Maria Madalena, região serrana do estado do Rio de Janeiro. Me ocupei desse projeto por mais de 15 anos, até quando ele ficou totalmente autossustentável.
A idade me preocupava, já estava na casa dos 50 anos e o sonho do Doutorado ainda irrealizado.
Em 1994, o Centro de Pós-Graduação em Desenvolvimento Agrário (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro lançou edital para sua primeira turma de doutorado. Me inscrevi, fiz a prova e fui classificado em primeiro lugar dos 10 inscritos. Defendi uma tese que é sobre a cultura rural e cronistas que passaram e deixaram suas impressões sobre a agricultura o ambiente natural do Brasil nos séculos XVI e XVII. Com a tese defendida, dei entrada num, no CNPq, de um projeto de pesquisa, e lá fiquei como Pesquisador 1B até 2010, quando me aposentei.
Você trabalhou como faxineiro e como metalúrgico em uma empresa em São Paulo. A partir da sua experiência, tendo em mente seu envolvimento com os movimentos da esquerda, bem como a trajetória de Lula, você acredita que alguma forte liderança possa surgir na periferia, fora da classe média e da elite?
Na minha modesta opinião acho que uma liderança carismática semelhante ao Lula pode surgir, mas não a curtíssimo prazo. O Brasil é um país carente de grandes lideranças, tanto de direita, como de esquerda. No lado da direita, as lideranças se comportavam, e continuam se comportando, na linha do coronelismo patriarcal dos séculos anteriores, só que os de hoje se apresentam com novas roupagens e um certo verniz modernoso. Mesmo assim, a última liderança carismática de direita foi o ACM, o velho, porque o ventrículo que anda no poder fazendo barbaridades construiu uma imagem falsa de líder popular de direita.
Getúlio Vargas foi uma grande liderança de direita. Seu discurso, típico do estilo populista como foi o Peron na Argentina, entusiasmava o povo. Getúlio se autodenominou “pai dos pobres”, mas pessoas mais críticas e/ou radicais chamavam-no também de “mãe dos ricos”. Perón, na minha opinião tinha esse mesmo comportamento do Getúlio, de ser o “pai dos pobres e a mãe dos ricos”, só que Perón está na memória viva dos livros e do povo, enquanto que Getúlio está apenas na memória dos livros.
Pela esquerda, Luís Carlos Prestes, fez alguns ensaios de liderança popular, e depois Jango, que com a colaboração do próprio Prestes e de intelectuais e jornalistas de esquerda, mobilizou aquela multidão na Central do Brasil no fatídico discurso de 13/03/1964. Leonel Brizola também tentou esboçar uma liderança nacional – defendendo a necessidade de fazer a mudança social - mas atualmente é lembrado por meia dúzia de gatos pingados. A mesma coisa são as outras lideranças, incluindo Francisco Julião com as suas Ligas Camponesas e Miguel Arrais, que atuaram como lideranças locais.
Nos dias atuais, surgiram algumas boas lideranças populares como é o caso da liderança do MST, de Guilherme Boulos, Jandira Feghali, Haddad, Flavio Dino, Sonia Guajajara e mais algumas outras, mas me parecem serem ainda limitadas a certos redutos de seguidores.
Uma questão interessante é a formação de partidos no Brasil. Enquanto a direita, e também algumas agremiações de esquerda, criam seus partidos na base do “compadrio”, Lula criou o seu partido com uma forte base popular. Intelectuais participaram na fundação do PT? Claro que sim, mas foram aqueles que se identificavam organicamente com os ideais da classe trabalhadora. Não sou tão otimista quanto a novas lideranças preparadas para assumirem o comando político dessa nova e complexa sociedade de classes.
Você chegou de pau-de-arara a Sã Paulo, namorou moças analfabetas e, aos poucos, rompeu barreiras, vencendo o que você chama de cinco “tempos de esperar” (o quinto sendo o doutoramento). Como é ser pobre e excluído?
É pura verdade! Quando eu trabalhava como porteiro e faxineiro namorei somente moças pobres: na maioria empregadas domésticas e faxineiras. Nem balconistas de lojas de material elétrico da rua Santa Ifigênia eu namorava, porque elas pertenciam a outros estratos sociais mais altos do que o meu...
No prédio onde eu trabalhava, que ficava na chamada “Boca do Lixo” e hoje Cracolândia, a totalidade dos moradores era de origem de classe média baixa: mascates, coveiros de cemitério, pedreiros, policiais, caixeiros de lojas, alfaiates, modistas, pianistas de cinema pornô, Office boys, empregados da estação Sorocabana, camelôs, porteiros de hotel, prostitutas, cantoras de cabarés, entre outros. Desses grupos algumas famílias tinham filhas adolescentes. Muitas delas passavam pela portaria e nem sequer me cumprimentavam, a não ser se o portão estivesse fechado - elas mandavam eu abrir e nem sequer diziam um muito obrigado. Eu me sentia ofendido? Claro que não porque acreditava ser inferior a elas, afinal eram moradoras e eu um serviçal...
O zelador, um sertanejo que nem sabia assinar o nome, me alertava que era proibido ficar conversando com uma dessas garotas para evitar reclamação das famílias, principalmente das que trabalhavam na polícia. Com os filhos rapazes poderia conversar, mas com as moças não. Há algum preconceito de classe nesse tipo de comportamento? Quando eu estava trabalhando nesse edifício achava que não. Depois que sai de lá, fui trabalhar num outro tipo de ambiente e comecei a perceber que havia também o mesmo tipo de comportamento dos moradores do prédio da Santa Ifigênia em relação à minha origem baiana.
Normalmente, para as pessoas de todos os lugares onde trabalhei em São Paulo, eu não tinha nome, porque me chamavam de baiano, baixinho, cabeça chata. Mas isso não era só comigo, era com todos os sertanejos nordestinos que vinham trabalhar por lá. Tudo que acontecesse de “errado” e que feria a ordem e os hábitos tradicionais dos paulistanos era coisa de baiano. O mesmo acontece ainda hoje no Rio de Janeiro e os cariocas alegam que são praticadas por paraibanos ou cearenses.
A minha situação mudou da “água pro vinho” quando entrei na Universidade de São Paulo, havia estudantes de todo o Brasil e do exterior, tinham outro comportamento. Hoje estou velho, aposentado e vivendo por algum tempo isolado e em contato com pouquíssimas pessoas. Vejo que mesmo aqui dentro dessa pequena comunidade, onde me criei, existe um relativo grau de exclusão que se revela, inclusive, pelo tipo de habitação. Quem mora na rua principal são as pessoas que têm um poder aquisitivo maior, e quem mora na Rua da Boiada, antiga Rua de Baixo são pessoas que nem sequer recebem Bolsa Família e vivem de bicos.
Quando você decidiu instalar uma biblioteca em São José do Paiaiá – que atualmente consta com 130.000 volumes, a maior biblioteca rural do mundo – você acha que foi movido pelo desejo de conscientizar o campo, como se diria há algumas décadas, ou pelo idealismo do menino do interior que teve sua grande epifania em relação a mudar de vida a partir das primeiras leituras?
Desde criança eu deseja ter livros. A minha primeira compra de livro foi “O mestre dos mestres”, um manual de cartas dos mais diferentes assuntos, de Saverio Fitipaldi, Comprei-o quando fui, pré-adolescente, conhecer Salvador e pagar uma promessa ao Nosso Senhor do Bonfim que minha tia havia feito para eu ficar livre da miopia.
Em São Paulo, criei o hábito de, quando tinha uma graninha sobrando, ir à livraria e comprar um livrinho para ler. Fiz a minha primeira inscrição num clube de livro nessa ocasião, o “Club do Livro” da Editora Saraiva. Tinha vontade de ler tudo que aparecia na minha frente: de bula de remédio à Bíblia de Jerusalém.
Nos últimos 40 anos, quatro morei em Olinda e 36 no Rio de Janeiro. Foi nesse período que o meu acervo cresceu, o que atribuo em parte por ter deixado de emprestar livros a amigos... Não tendo mais espaços na minha casa, aluguei duas quitinetes e enchi de livros. Como a despesa aumentava e o meu salário de funcionário público federal estava estacionado, tinha que dar um jeito naquela situação. Fui à coordenação da biblioteca central da UFRJ perguntar se aceitava doações de livros, mas ela disse não. Da mesma forma fiz com a Biblioteca Nacional e a Biblioteca Estadual Celso Kely, que é a biblioteca modelo do estado do Rio de Janeiro, e as respostas foram as mesmas.
O primeiro objetivo em criar a biblioteca aqui no sertão foi salvaguardar o rico acervo reunido em 50 anos. Conversei com o meu sobrinho Arivaldo, que vive em Paiaiá e cursava o primeiro ano do ensino médio, e perguntei se topava tomar conta de uma biblioteca comunitária, ele disse que sim. Saímos atrás de uma casa para alugar. Alugamos uma garagem e convocamos uma reunião na Escola local, para anunciar a novidade, e pedir apoio da comunidade para ajudar na gestão. As reações dos presentes foram bem diferentes: de dizer que no povoado não precisavam de biblioteca porque as pessoas daqui não gostam de ler, à de propor uma fábrica para gerar emprego porque “as pessoas antes de ler precisam comer”. Houve até uma proposta, que em vez abrir uma biblioteca, se abrisse uma igreja evangélica.
Nada disso foi aprovado e continuamos discutindo a criação da biblioteca. Colocamos em discussão a escolha de vários nomes sugeridos. Teve alguém que sugeriu os nomes do dr. Gilberto Marinho, da Globo, ACM (o velho) e de outras pessoas de renome aqui do município: ex-prefeitos, padres vivos ou falecidos e até o nome de um Pai de Santo, o sr. Chico Fulô, falecido há muitos anos. No final, o nome que venceu foi o de Maria das Neves Prado. Maria das Neves Prado foi uma tia minha que só tinha o primeiro ano primário. Foi pioneira em alfabetização de adultos aqui na comunidade numa época em que ninguém nunca havia escutado falar no nome de Paulo Freire.
De volta ao Rio, enviei o primeiro carregamento, de 12 mil volumes, e que chegou aqui, para nosso azar, no dia que o Jornal Nacional da Globo anunciou o roubo de livros na biblioteca histórica do Itamarati, no Rio de Janeiro. Uma senhora que era zeladora da Igreja e não gostava muito de ler nada que não fosse a Bíblia, se viu incomodada com aquela situação: o noticiário do JN da Globo sobre roubo de livros e ao lado da sua casa um caminhão carregado com 12 mil volumes para deixar aqui no Paiaiá....
Outros carregamentos de livros foram enviados, alguns eu pagando o frete, mas contei com o apoio de algumas pessoas físicas e jurídicas, entre elas o professor Antônio Cândido, Walnice Nogueira Galvão, que se declarou madrinha da Biblioteca, e a ex-colega de mestrado Beth Mindlin, que bancara as despesas de boas doações feitas à biblioteca. A Viação Itapemirim auxiliou, o Ministério de Desenvolvimento Agrário, e por último a Empresa TNT Mercúrios de São Paulo. A rede Nacional de Bibliotecas Públicas também contribuiu, com o aval do ex-ministro da Cultura Juca Ferreira. Revistinhas da Monica foram penduradas nos pés de árvores para a criançada do Paiaiá pegar e delas doamos para mais de 50 escolas da rede pública do município de Nova Soure e vizinhos.
Sim, além da minha epifania com a leitura, em si, como fundamental para a formação, também concebo a função de uma biblioteca -– injetar a leitura, de uma forma crítica e democrática, no mundo dos leitores, em especial a partir da infância e adolescência. É possível mudar a qualidade de vida de cada cidadão e cidadã através da prática da leitura, como colocam Paulo Freire, Lev Vygotsky, Michele Petit e vários outros autores.
Tanto seu mestrado como seu doutorado em História, ambos pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, tratam do Desenvolvimento Agrícola. Como é a situação no campo aí, no interior da Bahia?
O agronegócio é, talvez, o maior problema para se analisar hoje em dia, não somente por causa dos seus efeitos, mas sobretudo por causa das personagens que estão envolvidas. Há 41 anos, quando eu fiz o mestrado em Desenvolvimento Agrário enfocando a relação entre educação rural e progresso técnico no vale do São Francisco, o tema estava sendo bastante discutido.
Estávamos no fim do regime militar e inúmeros eventos universitários e também governamentais começavam realizar debates sobre a reforma agrária, porém ainda desatrelados da questão da preservação do meio ambiente. Essa só começou a se aprofundar mais exatamente a partir 1990, quando o Ibase, então sob a liderança do Herbet de Souza, o Betinho, liderou o Movimento Terra e Democracia, que se realizou no Aterro do Flamengo, Rio de Janeiro, em 21/03/1990, reunindo um público de cerca de 200 mil pessoas. O evento foi encerrado à noite, com um lindo show de MPB, sob a coordenação de Milton Nascimento.
Para a nossa realidade agrícola, aqui do município de Nova Soure e municípios circundantes a produção agrícola é muito importante. O que há novo em relação à tecnologia usada há 50 anos? O uso do trator, a aplicação de agrotóxicos e de sementes geneticamente modificadas na agricultura, a derrubada das arvores nativas substituindo-as por novas espécies invasoras e normalmente importadas, com o consequente entupimento e poluição das nascentes dos riachos e rios.
Hoje em dia, é impossível encontrar um produto que não seja produzido sem agrotóxico, e o mais grave ainda são os transgênicos, que já estão sendo produzidos no país inteiro, inclusive aqui na região. Está havendo um desmatamento desenfreado por aqui. Há situações inacreditáveis e, como exemplo, vou citar apenas uma. Temos um médico que herdou uma fazendinha do seu pai que era um encanto, cheia de coqueiros, mangueiras, goiabeiras, um verdadeiro pomar. Nessa propriedade havia duas nascentes que jorravam águas para um riacho que corria pelo seu interior e por onde, quase todos os anos, passavam enchentes.
A família desse senhor não era rica, mas se esforçou colocando-o para estudar em bons colégios em Salvador. Ele faz o vestibular, entra em medicina, se filia ao Partido Verde e começa a se candidatar a prefeito de Nova Soure. Nos seus discursos falava tantas asneiras que fazia lembrar o prefeito da novela o Bem Amado da TV Globo. Um dos absurdos que praticou foi mandar tapar as nascentes da sua propriedade, o que terminou por secar o riacho e, não satisfeito, comprou motor-serra e mandou derrubar as mangueiras e tamarineiros da sua propriedade “para ninguém entrar para pegar as frutas”.
Como é estar voluntariamente isolado na sua região, em São José do Paiaiá, sem grandes interlocuções?
O isolamento é uma situação angustiante para qualquer pessoa. Passei uma única vez por um isolamento de duas semanas, em circunstância totalmente oposta a que estou vivendo agora. Foi em 1972, no auge da ditadura, quando fui tirado de uma sala de aula no prédio de História com dois elementos me empurrando pelas rampas do prédio com canos de metralhadoras apontando para a minha cabeça.
Era a polícia assassina da Operação Bandeirante me levando para o quartel do Exército em Ibirapuera (um dos muitos locais de torturas) onde passei quase duas semanas solitário, vivendo numa cela de mais ou menos três metros quadrados, um colchão surrado jogado no chão, um buraco no chão para servir de latrina, com uma torneira pingando o tempo todo e uma luz elétrica mais fraca do que a de um candeeiro.
O mau cheiro de fezes era insuportável, aquelas grades de ferro pesadas me arrepiavam. A comida dava nojo e quando o carcereiro entregava ainda ironizava dizendo que aquilo era um prato especial feito somente para comunista. Isto sem contar a tortura física e psicológica, no meu caso foi mais psicológica do que física, mas também levei alguns telefones nos ouvidos que comprometeram minha audição do lado esquerdo até hoje.
Uma vantagem do meu isolamento aqui é estar no povoado onde nasci, que hoje tem cerca de 600 habitantes. O tempo está chuvoso, verde e bonito, e jamais dá para comparar com os dias que passei na OBAN, ou inferno.
Tem uma bela biblioteca como você sabe. Nas manhãs, cedinho, faço uma caminhadinha numa estrada pelo meio do mato na qual não transita ninguém. De seres vivos somente animais e vegetais, por que nem peixes existem mais nos riachos, os “novos civilizados” estão acabando com os olhos d’água das suas propriedades e derrubando as árvores.
Tanto tempo para pensar, fluem ideias. Algumas são factíveis de estudos e reflexões, como por exemplo autores afirmando que quando acabar essa pandemia o comportamento da humanidade vai mudar totalmente, ao ponto de alguém dizer, sem nenhuma base científica, que o capitalismo vai começar a se desmoronar. Tenho minhas dúvidas.