"A vida é de quem se atreve a viver".


Maria Lúcia Verdi: "Porto é sinônimo de chegada e partida, bem como de lugar seguro. O tempo é por excelência inseguro, instável, nele ocorrem nossas chegadas e partidas."
Porto e Tempo

Maria Lúcia Verdi –

“...Todos os caracteres nobres não adquirem,
sem doloroso aprendizado, a desconsoladora
ciência que se chama ceticismo. Cada ilusão
que se desvanece é um golpe fundo no mais
sensível da alma, e os conflitos da vida social
deixam feridas que só lentamente cicatrizam...”

Júlio Dinis (Porto 1839-71)

Porto é sinônimo de chegada e partida, bem como de lugar seguro. O tempo é por excelência inseguro, instável, nele ocorrem nossas chegadas e partidas. Cada tanto encontramos algum porto mas, segundo os mestres zen, a nenhum deles devemos apegar-nos.

Volto ao Brasil, a Brasília, depois de um mês longe das barbaridades nacionais. Chego de um país atualmente socialista (alvíssaras!) e aterrissoo num país que já se considerou “abençoado por Deus”, no melhor sentido da expressão. Vontade de compartilhar algo do vivido, aprendido e cansaço frente ao confronto das realidades. Esforço para que dificuldade não se transforme em impossibilidade.

Porto, uma cidade à beira de um rio, um rio que se une ao mar. Gaivotas em permanente voo e canto. À noite, transfiguram-se essas gaivotas - o que são essas formas brancas que, iluminadas, cruzam o céu e nos fazem alçar constantemente a cabeça? Sim, são gaivotas, mas também pontuam um aqui e agora: estou à beira mar, distante do planalto central.

Pelas ruas, nos jardins, nas casas, no chão, por toda parte árvores repletas de camélias, laranjeiras, limoeiros e tangerineiras. Cidade assim pontilhada de rosa, branco, vermelho, laranja e amarelo – contraste permanente com o azul e branco dos icônicos azulejos. Natureza e cultura, tranquilidade, segurança, diálogo do antigo com o contemporâneo, uma cidade humana. Duro demais ver Brasília, planejada para ser tranquila e igualitária, transformada numa ilha de bem-estar e beleza pontilhada pela miséria sem cor.

Exílio

Quando a pátria que temos não a temos
Perdida por silêncio e por renúncia
Até a voz do mar se torna exílio
E a luz que nos rodeia é como grades
(Sophia de Mello Breyner - Porto, 1919-2004 - Prêmio Camões 1999)

Na biblioteca Almeida Garrett, nascido no Porto como outros grandes - cito os mais conhecidos por aqui: Júlio Dinis, Sophia de Mello Breyner, Agostinho da Silva, Manoel de Oliveira – situada nos jardins do antigo Palácio de Cristal (“Jardins dos Sentimentos” – leia-se e escute-se com a pronúncia lusa, que intensifica a beleza do nome) peço para ver o filme “Porto da minha infância”, realizado por Manoel de Oliveira, por encomenda, em 2001, quando aquela cidade foi capital europeia da cultura.

Manoel de Oliveira (Porto, 1908-2015) ama-se ou odeia-se, dizem. A estética realista, lenta e sutil reitera detalhes. Uma filmografia sintonizada com o que percebo (que se escute o sotaque) desse norte de Portugal. São fundamentais a presença do Tempo, da História e da Literatura em sua obra, assim como nas marcas que essas três grandes categorias deixaram na cidade. Do Porto da infância de Manoel restam poucos espaços que se mantêm mais ou menos como eram.

Diz o cineasta português: “O Cinema é o espelho da vida. E não só é o espelho da vida como não há outro, é o único espelho da vida. E sendo-o é também a memória da vida.” O amante da literatura afirma a predominância da imagem em movimento sobre a palavra romanceada ou teatralizada; o cinema permitindo que a complexidade das elipses, dos silêncios, dos labirintos do humano se faça intuir nos rostos, nos corpos dos atores que têm sua atuação congelada em película. “Os rituais são muito importantes. Sem eles, a vida seria indecifrável. O cinema não filma senão isso, um conjunto de signos, de convenções. A vida é um enigma, não é legível. São os rituais que nos permitem lê-la.” Decifram verdadeiramente a vida os rituais ou ela os supera? A ilegibilidade da vida é questionada pelo cinema de d´Oliveira.

Esse poeta da imagem e do mistério retira seu material do concreto: “Desconfio sempre da imaginação.” Mostra-nos a angústia dos personagens, sem nunca as desvelar completamente, em enredos que “são histórias de agonia, da agonia no seu sentido primeiro, no sentido grego, `a luta`”. Manoel desenvolveu essa percepção da luta, da agonia, do mistério, no cenário em que nasceu, entre o rio Douro e o Atlântico, observando as gentes a lutar com o mar, a caminhar por entre as ruas escuras, os prédios barrocos, as inúmeras igrejas, os azulejos que recordam, onipresentes, o peso do tempo e da história, a angústia da finitude e o apelo à divindade.

 

Humanista, libertário sem rótulos, recorda com propriedade: “O que mais me marcou, no aspecto social e mundial, foi o 25 de Abril. Foi o ato que mais me marcou. Por quê? Porque o 25 de Abril, em si, tem um momento extraordinário: os militares, que fizeram o 25 de Abril, não desejavam tomar o poder. Fizeram-no para entregar o poder democrático ao país. Este é um caso raro e único”. Enquanto nós, vivemos o que vivemos e estamos a ver a triste repetição de militares por todos os lados.

Dos nascidos no Porto, me deterei em Agostinho da Silva (1906\1994) por ter ele tido intensa relação com o Brasil. Ao contrário de Manoel de Oliveira, confiava na imaginação, tendo-a como essencial, mas, como o grande cineasta, convivia com o mistério. Foi filólogo especialista nos clássicos, filósofo, pedagogo, poeta (da linha de Fernando Pessoa, seu mestre) e tradutor, tendo vivido no Brasil de 1947 a 1969. Fugindo da ditadura de Salazar, Agostinho trabalhou na Fundação Oswaldo Cruz (RJ), onde estudou entomologia; lecionou filosofia nas universidades federais do Rio de Janeiro, Pernambuco, Minas, Goiás e Paraíba, bem como Filosofia do Teatro na Universidade Federal da Bahia. Em 1954 colaborou na organização da Exposição do Quarto Centenário da Cidade de São Paulo. Em 1961 foi assessor para a política externa de Jânio Quadros. Criou o Centro Brasileiro de Estudos Portugueses da Universidade de Brasília. É um dos fundadores da Universidade Federal de Santa Catarina e idealizador do Centro de Estudos Afro-Orientais, de Salvador.

Utopista, recriou o sebastianismo português, imaginando o Brasil como capaz de vir a ser uma grande força civilizatória, acreditando, mesmo, ser este o destino de nossa pobre nação. Releiam gentilmente a citação inicial desta matéria.

Agostinho, além de ter revisto o sebastianismo português, era, como o Padre Antonio Vieira (1608-1697) milenarista, acreditava num futuro longo tempo de paz, sob o império de Cristo. Vieira acreditava ser Portugal predestinado a ser um Quinto Império do futuro, a propagar a paz e a fé. No século XX, Agostinho viu o Brasil como a potência destinada a ter esse papel. O milenarismo, relacionado ao místico sebastianismo português do século XVI (o retorno do rei perdido na batalha de Alcácer Quibir e a retorno de um Portugal poderoso e independente), ecoou no Brasil em três movimentos, o mais importante deles o de Antonio Conselheiro pregando, em Canudos, a volta da monarquia. Na Ilha de Lençóis, no Maranhão, acreditam que Dom Sebastião aportou por lá e se transforma, periodicamente, num touro negro e Encantado. Como diz Fernando Reis, autor de Falta um Cão na Vida de Kant e do ainda inédito “Vidas paralelas – o Padre e a Rainha”, (sobre Antonio Vieira, sua relação com a rainha Cristina da Suécia e o tempo em que viveram): “Viva a ilusão!”

Humanista provocador que se auto definia como um “nacionalista místico”, Agostinho foi amigo e influenciador de Glauber Rocha, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jorge Mautner e do parceiro Roberto Pinho. Pensador polêmico, aproxima o panteísmo ao cristianismo milenarista, comprometendo-se, sobretudo, com os ideais da liberdade e da justiça social. Para este portuense peculiar todos têm um poeta, um criador dentro de si– a imaginação é qualidade fundamental a ser descoberta e estimulada desde a infância.

Crítico radical do consumismo capitalista, diz coisas como: "Os economistas tinham sobretudo a obrigação de não nos andarem a calcular inflacções e a taxa de juros e essas coisas, mas dizerem de que maneira é que nós podemos fazer avançar a gratuidade da vida." Gratuidade também no sentido do que é gratuito mas, creio, sobretudo no sentido poético da gratuidade da vida, sem justificativas, sem explicações lógicas para a vida. A gratuidade de que trata a obra de Clarice Lispector, por meio das epifanias que acometem seus personagens.

"Temos, sobretudo, de aprender duas coisas: aprender o extraordinário que é o mundo e aprender a ser bastante largo por dentro, para o mundo todo poder entrar." Largueza esta que nos está a faltar, haja vistas os radicalismos atuais. Personalidade, a de Agostinho, que poderia ser aproximada à do Papa Francisco, quem, segundo Leonardo Boff  “é o único na história dos papas que ataca de frente o sistema hegemônico mundial e toma a posição das vítimas, defende os pobres do mundo, um novo tipo de relação com a terra, não de uso, mas de cuidado, para que se possa atender a toda humanidade, e não só os ricos.”

E para terminar as citações de Agostinho da Silva, compartilho uma que certamente provocará desconforto: "Podes, e deves, ter ideias políticas, mas, por favor, ´as tuas´ ideias políticas, não as ideias do teu partido; o ´teu´ comportamento, não o comportamento dos teus líderes; os interesses de ´toda´a Humanidade, não os interesses de uma ´parte´ dela. E lembra-te de que ´parte´ é a etimologia de ´partido´." Muito antes de que se falasse no tema, Agostinho imaginava um bloco de países independentes, não alinhados nem aos EUA nem a antiga União Soviética.

Partido, parte, me traz à mente os que estão apartados, emprisionados no espaço embora não necessariamente no tempo. E decido terminar esta matéria retornando ao Porto histórico e ao atual. O imponente prédio da antiga prisão do Porto (a Cadeia e Tribunal da Relação, construída no final do século XVIII) foi reformado e hoje abriga o esplêndido Centro Português de Fotografia, que contem museu e espaços para mostras e seminários; lá pude ver a mostra Murmúrios do Tempo, composta por tocantes fotografias de antigos presos.

Entre os que lá penaram, encontra-se o poeta romântico Camilo Castelo Branco. Preso por ter tido um caso com a mulher de comerciante rico (e brasileiro…) lá escreveu, a propósito, Amor de Perdição; de sua cela divisava uma bela vista e recebia visitas, inclusive a do Rei Don Luís.

Outros tempos esses em que um simples amor fora da lei justificava um encarceramento. Os tempos que são outros e o mesmo pois ainda hoje os exercícios de liberdade amorosa são penalizados de todas as formas sendo que delitos imensamente maiores não são punidos com justiça.

Por outro lado, felizmente, permanecem ainda parcialmente as mesmas as tantas caras do Tempo, expressas nas artes, em cidades como o Porto. Porto onde nasceu, pela imaginação de Fernando Pessoa, o médico-poeta Ricardo Reis (1887-1919) tendo, como Agostinho, vivido como expatriado no Brasil. Verdade e ficção, tempo e memória – tudo verdade.

Uns, com olhos postos no passado,
Veem o que não veem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, veem
O que não pode ver-se.

Por que tão longe ir pôr o que está perto –
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morremos. Colhe
O dia, porque és ele.

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