"A vida é de quem se atreve a viver".


Cena do espetáculo "O Rinoceronte", dirigido por Hugo Rodas (Fotos: Diego Bresani)
O Rinoceronte de Hugo Rodas – Ionesco deglutido

Maria Lúcia Verdi –

O senhor idoso – (ao Lógico). É bonito, a lógica.
O Lógico – (ao senhor Idoso) Contanto que não se abuse.

Bérenger - (a Jean) Viver é uma coisa anormal.
Jean - Pelo contrário, nada mais natural. E a prova é que toda gente vive.
Bérenger - Os mortos são mais numerosos que os vivos. O número deles aumenta e os vivos são raros.”

A vida é insólita, estranha se olhada com olhos de ver. Três pilares da literatura brasileira nos ensinaram esta verdade: Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector. O Rinoceronte de Hugo Rodas é desesperadamente cômico, absurdamente realista, reforça o absurdo do trágico de Ionesco e nos faz rir incomodados. Teatralizada ao máximo, nossa angústia está ali, naquela animalização tão semelhante a que rodeia nosso dia-a-dia. A adaptação feita pela ATA (Agrupação Teatral Amacaca), que há mais de oito anos é dirigida por Hugo, engole o texto de Ionesco, carnavaliza-o, leva ao máximo do humor (negro) a insólita situação do enredo.

O tempo presente (histórico) é por demais presente na sua bestialidade – multiplicada em gestualidades e expressões que cotidianamente nos agridem - para que o guerreiro uruguaio siga exatamente o texto do grande autor romeno: não há interesse ou beleza em transformar-se em rinoceronte na versão candango-uruguaia, ao contrário do texto original. A transformação dos personagens em rinoceronte é revoltante, indesejável; a sedução está em outro lugar: o da música, que evoca outros tempos e lugares mais amenos.

Nesta encenação de Rinoceronte, a náusea que sentimos frente ao que a direção de Rodas faz com o texto é não apenas a sartreana, existencial, mas uma náusea tropical e antropofágica. Comemos uns aos outros. É fundamental que a arte de hoje provoque esta náusea, este nojo. Mas a complexidade do texto, entrelaçada à mise-en-scène, ao mesmo tempo em que nos provoca horror, nos envolve num vórtice gozoso - são os paradoxos próprios da vida que a arte desvela, aprofunda. Vórtice criado pelo ritmo alucinante dos fantásticos integrantes da ATA. O perigo que nos ronda – o totalitarismo e a massificação - como o que rondava a Europa quando a peça foi escrita, está ali exposto e assusta.

Nesta montagem, Bérenger, o anti-herói de Rinoceronte, aquele que resiste à animalização, é interpretado por uma mulher, a sempre excelente Rosana Viegas. Muito foi encenada esta obra, em tantas línguas e lugares, talvez Bérenger já tenha sido interpretado por uma mulher; mas agora, neste momento, é significativo que o Diretor tenha colocado uma atriz para personificar aquele que insiste em permanecer humano.

Bérenger, em suas próprias palavras afirma “Não me habituo com a vida” como também não pretender habituar-se a ela. A vida burguesa, repetitiva de um funcionário típico sem tempo para nada não é para ele, dotado de distanciamento frente ao cotidiano. Bebe porque o álcool o ajuda a enfrentar o medo, a angústia.

“Eu sinto a cada instante o meu corpo, como se ele fosse de chumbo, ou como se carregasse um outro homem nas costas. Ainda não me habituei comigo mesmo. Eu não sei se eu sou eu. Mas basta beber um pouco, o fardo desaparece e eu me reconheço, eu me torno eu mesmo.” Bérenger sabe estar desarmado frente à vida, como tantos seres sensíveis.

No texto de Ionesco os animais do zoológico da cidade onde se passa a história foram todos mortos por uma peste; os nômades (o pessoal do circo) foram proibidos de permanecer na região da cidade. Os rinocerontes que invadem a cidade não vêm de nenhum lugar, são as pessoas que se deixam neles transformar, encantadas pelo primitivismo, a força da natureza, em vez das leis morais que sedimentam a sociedade. É a força do inconsciente, os instintos liberados. Muitas das personagens convencem-se de que é interessante a experiência de vir a ser rinoceronte.

Tentar compreender esse desejo de transformação, entender a possível razão alheia é outro dos veios da peça: “Os bons sujeitos dão bons rinocerontes. É porque eles são de boa-fé que, infelizmente, podem ser enganados!” A analogia com o que estamos vivendo é direta e rimos sem sorrir.

A questão do “ver”, do compreender exatamente o que ocorre, indagar sobre o estatuto da verdade é um dos motores da peça. Um dos personagens, Botard, diz: “Não acredito nos jornalistas. Os jornalistas são todos uns mentirosos [...] não sabem o que inventar para vender seus jornais infectos, para servir patrões dos quais eles são lacaios! O senhor acredita nisso, senhor Dudard, o senhor um jurista, um licenciado em direito? Ora, deixe-me rir! Ah! Ah! Ah!” O local onde trabalham os personagens está cheio de tabuletas: "Jurisprudência”, "Códigos", "Diário Oficial”. Na montagem de Hugo a ótima cena do escritório nos lembra Chaplin e sua antológica crítica à mecanização, em “Tempos Modernos”.

A personagem do Lógico, muito bem utilizada na versão de Rodas, parece fisicamente inspirada na figura de James Joyce. A lógica do Lógico, seus cômicos silogismos assinalam o absurdo “A justiça é a própria lógica.” A montagem desse texto, ícone do non-sense, pareceu-me dialogar com uma série de intertextos. Homenagens?

Por fim, impressiona ver Hugo Rodas, aos oitenta anos, dirigindo cinco obras poderosas em um ano: Opereta, Os Saltimbancos, O Olho da Fechadura, Prometéia e, para encerrar, este Rinoceronte solto entre nós fazendo-nos tremer, alertando-nos despertando-nos do torpor.

O horror aos totalitarismos, seja de que ideologia for, está na base da arte de Ionesco assim como na arte de Hugo Rodas. Um presente que nos deu o Uruguai, este diretor, este ator e criador que tem sua história unida à da capital brasileira há quarenta anos. Na trajetória de Hugo, nos grupos que criou e nas obras que escolheu dirigir está, sempre, um olhar atento, crítico, jocoso e afetivo sobre a realidade brasileira.

Na estética rodasiana a intenção de envolver a plateia numa viagem visual-sonora-textual: figurinos, coreografias, cenas que são pintura em movimento criam, a cada peça, algo espetacular e singular. Afinal, teatro é para isto: fazer-nos voar ao mesmo tempo em que recebemos tapas na cara.

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Ficha técnica:
Espetáculo: O Rinoceronte
Direção Artística: Hugo Rodas
Elenco: Abaetê Queiroz, André Araújo, Camila Guerra, Dani Neri, Gabriela Correa, Iano Fazio, Juliana Drummond, Luiz Felipe Ferreira, Nobu Kahi, Pedro Tupã e Rosanna Viegas.
Operação de luz: Lemar Resende
Coordenação Técnica: Rodrigo Lélis
Produção Executiva: Luciana Lobato
Programação Visual: Patrícia Meschick

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Serviço:
Próximas apresentações no Espaço Cultural Renato Russo (508 Sul, Brasília): De 24 de janeiro a 23 de fevereiro de 2020, sessões extras e sábados às 20h, O Rinoceronte. Aos domingos às 16h e às 19h, Os Saltimbancos.

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