Maria Lúcia Verdi –
Creio que existem no mundo muito poucas capitais onde frequentemente se pode deitar na grama sob um céu de 180 graus, à sombra de árvores graficamente contorcidas a dançar para nosso olhar que se abre e fecha ao vento do planalto, balançando folhas e flores de tantas espécies. Deitar-se e dar-se conta da distância entre nós e o espaço sideral, bem como do horizonte à esquerda e à direita. Deitar-se e respirar tentando esquecer toda a realidade em torno por um breve e necessário espaço de tempo.
Isto acontece enquanto aguardo os cinquenta minutos da lavagem do carro. Deitada, sem celular para gravar, falo em voz alta este texto sabendo que em outro momento será escrito e será outra coisa. De sobra, antes de ir, retiro uma enorme jaca do pé e reflito sobre a expressão “enfiar o pé na jaca”. É que o leite da jaca é uma gosma difícil de limpar, incômoda. Enfiamos.
Incômoda como são incômodas, desagradáveis, as passagens para os pedestres que não se atrevem a atravessar os eixos. Sujas e fétidas elas revelam o intestino da capital, fazem o link com o Entorno malcuidado, sem os intermináveis jardins brasilienses, sem grama e sombra acolhedoras.
As autoridades não lembram que existem pessoas que atravessam todos os dias aqueles espaços - é que elas só existem em época de votação, quando são facilmente iludidas. Elas votam, mas não tem direito à passagem segura e limpa, assim como não tem direito a uma rodoviária que, mesmo em (interminável) obra, ofereça ao menos escadas rolantes. Não há urgência… Há meses os idosos, as grávidas, as mães com crianças no colo e os deficientes físicos precisam enfrentar as escadarias. Mas os políticos e administradores não circulam pelas passagens e pela rodoviária.
A elitista Brasília, que nasceu do sonho utópico de comunistas bem-intencionados, mas irrealistas; esculturas magníficas ao aberto, no cenário verde e azul, se contrapõem ao descaso com os espaços de trânsito. E vivemos em trânsito, fundamentalmente. Mas aqui os carros velozes parecem ser dirigidos por seres que evitam enfrentar-se com esta verdade. Nem sempre estaremos no luxo, na ilha, no recorte, no gabinete. Parece que apenas quando as águas invadem as tesourinhas os motoristas se lembram do inferno.
Viver aqui é esse impasse. Desfrutar de luxos tão peculiares e dar-se conta de horrores e descasos tão comuns, tão brasileiros. Uma Brasília que parece mirar para São Paulo e Miami numa estética cara que invade cafés e restaurantes repletos de refinamentos gastronômicos. Enquanto isto, os que dormem ao relento sob tetos de plástico negro, montam árvores de Natal perto das pistas na esperança de comover os motorizados. Sobreviver razoavelmente equilibrada neste nosso país é um exercício diário. Ajudam demais algumas alegrias brasilienses, entre elas o Parque Olhos d´Água, demarcado e construído graças à resistência e ao esforço de um grupo de cidadãos ativistas, sobretudo mulheres.
No Olhos d´Água (é possível nome mais bonito?) podemos praticar yoga, Tai Chi e ginástica gratuitamente. As aulas de ginástica da professora Tania Reis, com exercícios de fortalecimento, alongamento e posturas da yoga, conduzidas com suavidade e atenção, são mesmo um luxo – tudo ao som da cantoria dos pássaros. Somos muito privilegiados nós, moradores do Plano e do final da Asa Norte.
O difícil é vivermos em paz com nossa consciência cada vez que paramos em um local aberto e, em uma hora, ao menos quatro pessoas sem teto vem expor a condição em que vivem. Impossível esquecer o Brasil. Como uma chaga aberta, como diz a canção final da peça Olho da Fechadura, dirigida pelo genial Hugo Rodas, outro luxo à nossa disposição. Chagas que devem estimular nossa fé na luta e na resistência, cada um à sua maneira dizendo não à ignorância.
Como colaboram os grafiteiros que deixam seus pensamentos, seus desabafos, sua revolta e sua poesia nas sujas e fétidas passagens de pedestres da capital deste amado e sofrido Brasil. Viva a Arte, expressão maior de qualquer e de todas as subjetividades.