"A vida é de quem se atreve a viver".


Maria Lúcia Verdi: “Os documentários, poesias e pinturas de Maria Coeli são testemunhos de uma pessoa comprometida com seu tempo e consigo mesma”. (Foto: Janine Moraes/Divulação)
Maria Coeli e a Senhora Liberdade

Maria Lúcia Verdi –

Maria Coeli basta, mas ela é Maria Coeli Almeida Vasconcelos, filha de político, mineira de boa família, esmerada educação, ávida por viver e se expressar em distintas formas de arte. Nos conhecemos na UnB, ela uma mulher bela e sedutora eu, uma jovem que a admirava. Fizemos uma peça de teatro dirigida pelo Geraldo de Moraes, peça que marcou o retorno do teatro à universidade, isso, se não me engano, em 1975.

“Olhei, olhei de novo.

Será que a cagaita morreu?

Uma árvore em extinção morre

porque eu construí minha casa.

Dor profunda no peito, como

posso ser tão selvagem ainda?

Qual milênio?

Sempre igual o homem na sua

estupidez.”

Maria Coeli acaba de lançar “Liberdade é”, livro instigante, editado a partir de anotações “na tentativa de transformar uma vida inteira de escritos rabiscados, palavras inventadas, memórias muito frágeis e fotos muito velhas, em livro”.

Como diz Ana Maria Lopes na apresentação do livro: “Não há como enquadrar Maria Coeli. Difícil falar de uma mulher cuja alma se revela afirmando sua humanidade e sua essência sem pudores ou fronteiras. Ela parece habitar um tempo sem tempo, sem datas, sem dias ou noites. Habita na espera, no desassossego e na mistura – tão feminina, de fel e mel.” Seu livro é o espelho dessa diversidade, dessa liberdade, espelho em que, em muitos textos a reflete em terceira pessoa, como uma outra que ela observasse:

“Jimmy Hendrix rompe sua guitarra. E já houve o tempo dos Beatles e dos Rolling Stones. Sumida, a mulher escreve. Vai riscando o papel tentando apressar a mão para acompanhar a mente. Inúmeros arrepios de frio. Sempre os cigarros numa verve de companhia. Retratos das pessoas da família, postal de indiozinhos meninos, a estátua de Buda me espanta com aquele sorriso, no meio entre o verde e o oriente cheiroso das almofadas, ela escreve ainda, não sei como.”

Neste momento em que as mulheres são mortas, agredidas e desrespeitadas é importante conhecer a obra de artistas como Maria Coeli, que não se deixaram intimidar frente à sociedade machista e a ditadura. Seus documentários, sua poesia e sua pintura são testemunhos de alguém comprometida com seu tempo e consigo mesma. Compartilho o bate papo que tivemos:

Sua poesia, bem como seus filmes são marcados pelo amor à história, ao registro da memória seja de Minas Gerais, de Brasília e seu entorno. Com a idade, o que permanece mais em você, as alegrias e dores da infância, da adolescência ou da maturidade?

Da infância. Porque na infância eu tinha o melhor professor, que foi o meu pai, e minha mãe que ensinava música e fazia com que eu assistisse às suas aulas. A infância para mim foi muito boa. Eu aproveitei. É lógico que quando cheguei em Brasília, com dezesseis anos, pude valorizar os professores do Caseb. Reconhecia o valor de todos eles, a luta que estavam tendo ao vir do Rio pra cá. Na verdade, aqui o que havia era um grande desejo de ajudar a criar uma nova cidade. Eu fiz um filme chamado Caseb 30 anos e entrevistei 30 professores – todos os que ainda estavam vivos em 1990 e que moravam em Brasília. Eles falavam sobre o que foi trazê-los para a Capital Federal. Todo mundo tinha emprego bom, todo mundo estava muito bem empregado em Belo Horizonte, no Rio e em São Paulo e, de repente, largar tudo para vir para Brasília. Isso é o que foi mais bonito. Você não imagina como esses professores deram para nós o melhor de si.

Para quem viveu a Brasília da aventura, do desbravamento, do idealismo, como é ver a realidade da cidade hoje?

Olha é bem melhor do que nós pensávamos. Uma cidade criada no Século XX, que já está com 60 anos e tem muitas coisas positivas. As árvores frutíferas carregadas e o povo passando embaixo apanha uma, chupa e vai embora. Raramente se vê uma agressão às mangueiras.

Como é ter sido aluna de Paulo Emílio Salles Gomes, de Darcy Ribeiro, de Niemeyer? Ficou algo de essencial de cada um desses mestres na sua estética?

Sim, eu tive a noção de dignidade com esses três homens. Paulo Emílio Salles Gomes era um senhor muito bem educado da sociedade de São Paulo. Ele era conhecedor do cinema, da sua história e tinha amor pela arte. Oscar Niemeyer foi meu professor também; em sala de aula pediu para os alunos fazerem um monumento para Planaltina. Essa aula foi muito importante porque eu desenhei uma gota d´água dentro de uma outra gota d´água e esse monumento existe, está lá perto do Vale do Amanhecer mas não fui eu que fiz não. Darcy Ribeiro eu conheci na Universidade de Brasília desde o primeiro dia. Um dia eu estava passando no corredor e ele perguntou assim: “Pra onde você vai?” Falei: “Vou pra aula do professor Agostinho”. Ele falou: “Eu também vou. E foi e assistiu a aula”. Um reitor muito enérgico, pena que ele assumiu várias coisas ao mesmo tempo, a Casa Civil do Jango Goulart, Reitor da Universidade e se não me engano prefeito também da cidade, não sei, só sei que eram três coisas seríssimas que ele assumiu na época.

Acha que seu amor pela música e as artes a ajudou a criar duas filhas especiais? Como é isso da transmissão materna a partir da sua experiência?

Eu quis que elas tivessem formação em música desde os sete anos de idade, quem me orientou foi minha mãe, que era professora de música. A música alivia nos momentos mais tristes. A Manoela e a Paula aprenderam línguas, ballet um monte de coisas que foram boas para a sua formação.

“É um problema para eu escrever.

A casa, a atenção a cada filho,

Mulheres, somos nós que formamos eles,

Moldamos de barro, como Jesus.

Sou eu quem amarra seus pés, homem amado?

Falo como mãe alguma coisa errada?

O mundo não é das mães caladas.

Quinze minutos depois volto a escrever a causa, é a criada?”

Como você recebeu o livro “A morte do diplomata: um mistério arquivado pela ditadura”, do jornalista Eumano Silva, sobre as circunstâncias da morte do seu primeiro marido, em Haia, em 1970?

Foi um alívio para mim e minhas filhas porque foi a primeira vez que vimos uma pessoa fazer uma pesquisa detida, responsável sobre o que aconteceu. O Eumano foi à Holanda, viu tudo, como era o clima em volta do Paulo na época da ditadura. A Manoela e a Paula aprenderam a dividir a dor comigo.

Seu livro “Liberdade é” reúne textos de todo tipo, com absoluta despreocupação em seguir qualquer linha ou se enquadrar, num interessante hibridismo. Essa liberdade parece ter sido marca sua desde sempre, mulher, mãe e profissional autônoma e vanguardista numa sociedade machista e patriarcal. Houve algum momento, ou mais de um, em que você fraquejou, em que pensou que não teria coragem?

Não. O que me fortaleceu foi exatamente a ditadura. Eu estava com 20 anos em 1964 e aquilo foi uma imposição na nossa vida, nos prejudicou muito. Muitos professores foram mandados embora, professores que tinham vindo da Suíça. Foi uma perda muito grande para a UnB, naquela época. Não só eu como todos os meus colegas tivemos coragem pra enfrentar tudo, esperamos a universidade abrir e quando ela abriu nós voltamos. Quando cheguei lá encontrei professores que eu não respeitava, eram professores que tinham se coadunado à ditadura. Mas o que fazer?

Inspirada pelo ótimo título de seu outro livro “É triste, mas não é de soluçar”, pergunto: Você se arrepende de algo?

Me arrependo de não ter conversado mais com o meu pai sobre a revolução de 30 e 32. Me arrependo de não ter ouvido mais histórias da mamãe, de ter aprendido mais músicas de Muzambinho, de Boa Esperança, com a mamãe. Me arrependo disso. Eu digo aos jovens que ouçam os mais velhos e vão aprender muito.

Poderia nos dizer algo sobre as cineastas e poetas mulheres que você mais admira?

Eu admiro muito a Tânia Quaresma, admiro muito a Maria Maia, a Cláudia Pereira, todas são mulheres que tem seus trabalhos e o cinema, para elas, é como se fosse uma diversão, mas não é. As poetisas? Ah eu não sei nada das poetisas não, sabe? Pra gente fazer a poesia da gente a gente tem que prestar atenção na gente. Eu não presto muita atenção nos outros não. Pra te dizer a verdade nem conheço a poesia delas. A da Maria eu sei mais porque ela chega, coloca, mostra pra mim e eu gosto da poesia da Maria. Eu gosto mais da minha, é lógico.

Escritora, poeta, fotógrafa, cineasta, pintora, atriz – você se encaixa mais em algum desses aspectos de sua personalidade voraz ou vem tudo sempre junto?

É onde eu e a Maria (Maia) somos iguais. Nós somos pessoas que tivemos a sorte de receber muitos dons, então quando você abre os olhos com o dom de desenhar, você já desenha, desenha no jardim, desenha no chão, desenha na areia, desenha no papel, desenha no quadro negro. Desenho é o que eu mais gosto de tudo o que eu faço.

Quando a vida cansa, exaure, o que você se diz em silêncio?

Porra.

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