"A vida é de quem se atreve a viver".


Há quinze anos, anualmente e por três meses, Júlia Baptista conversa com alunos das escolas públicas da Ceilândia sobre a importância da expressão artística, do patrimônio histórico e, sobretudo, da necessidade de cada um aprender a perseguir seus sonhos e a resistir às limitações que a vida impõe.
No Dia dos Namorados: Cinderela da Ceilândia e a resistência

Maria Lúcia Verdi –

Brasília - Tudo o que vemos e lemos mostra-nos o horror sem limites. Por todos os lados a traição, a mentira, a violência - um quadro que não poderia ser mais desolador, mais absurdo. Mas hoje é Dia dos Namorados e resolvi contar uma história de amor, a história de Júlia dos Santos Baptista, nascida (oportuna) na Vila da Esperança, no Núcleo Bandeirante e protagonista de uma história que já foi alvo de matéria de trinta minutos na televisão holandesa, entrevistada pelo Jô Soares de lá.

É bom parar para escrever um conto de fadas tornado realidade graças à força de vontade da protagonista, também exemplo dos poderes de Eros, velho deus brincalhão, eterno menino que hoje comemoramos.

Júlia é filha de João da Costa Baptista, natural de Salvador, Bahia, candango que ajudou a construir a capital e de Maria Nazaré dos Santos, nascida em Boa Saúde, Rio Grande do Norte - vinte e cinco anos mais jovem do que o marido. Com a morte de mãe, aos doze anos a menina passou a cuidar do pai e dos quatro irmãos, todos vivendo com a modesta aposentadoria dele.

Aprendeu com a mãe a costurar, o que veio a lhe servir, pois ela mesma confeccionou o vestido de noiva com que se casou com um jovem advogado de família tradicional holandesa, usando o mesmo véu que as mulheres da família usam para se casar há cento e cinquenta anos. Me esclareceu: “Aqueles vestidos eram caretas demais!”.

Júlia e Allard van der Ven se conheceram em Natal, em 1994, quando os dois estavam em férias com um grupo de amigos. Ela trabalhava no Bradesco e ensinava matemática na Ceilândia durante o estágio do curso de Economia na UDF. Ao ver a musa morena caminhar na areia a flecha de Cupido foi direto no coração do branquela holandês. Conversas, aproximação, separação rápida após a flechada, cartas, telefonemas, vários acidentes de percurso - entre eles a dúvida de Allard quanto a se poderia bancar este amor frente à família e aos amigos – o desnível social era brutal, Júlia vinha do que eles chamariam de favela, ele pertencente à classe alta holandesa, empregado em uma grande multinacional.

Mas o amor venceu. Júlia foi para Amsterdam viu que daria conta daquela diferença toda e decidiram que, depois que ela terminasse o curso de economia, voltaria para a Holanda. Voltou, aprendeu holandês em um ano, tiveram dois filhos ao mesmo tempo em que ela se descobria pintora. Hoje, pintora (fotos abaixo) conhecida na Holanda e vencedora de concurso da ECT para os selos comemorativos dos 50 anos de Brasília, ela possui atelier em Amsterdam e em Águas Claras. Águas Claras é perto da Ceilândia onde cresceu e onde  mora sua família. Lá a artista há quinze anos faz um trabalho social de grande interesse.

Há quinze anos, anualmente e por três meses, conversa com alunos das escolas públicas da cidade sobre a importância da expressão artística, do patrimônio histórico e, sobretudo, da necessidade de cada um aprender a perseguir seus sonhos e a resistir às limitações que a vida impõe. Mostra um vídeo sobre seu trabalho, conta sua história de vida e do nascimento das pinturas (seis viraram selos) da Coleção Brasília (exposta em 2014 na galeria do STJ) inspiradas pelo desejo de fazer seus filhos conhecerem e amarem a arquitetura de Niemeyer e a proposta urbanística de Lúcio Costa. As crianças a entrevistam e, pelas cartinhas que li, entusiasmam-se com aquela conterrânea bem sucedida.

No último fim-de-semana conheci Júlia, graças aos amigos comuns Geo e Sérgio Arruda, e fui ao seu ateliê. Fiquei cativada pela sua espontaneidade, seu compromisso com o social e a educação: “Uma de minhas principais motivações é contribuir para a educação fundamental dos meus conterrâneos mirins. Acompanho os estudos dos meus filhos e percebo o quanto me faltou na infância. Esses `gaps` (faltas) de conhecimento sinto até hoje.”

Angustiada frente à realidade brasileira de hoje, me explica que lê sobre o Brasil na mídia internacional, mas que continuava sem poder entender o que havia ocorrido, apesar das explicações de Eliane Brum. “Como alguém poderia realmente explicar o que estamos vivendo? É injustificável!” Eu e as amigas com quem estávamos utilizamos todas as leituras possíveis, de Sérgio Buarque e Gilberto Freire a Jessé de Souza, mas ao final o espanto continuava.

Tendo em mente o que o Museu da Pessoa fez registrando vidas comuns e especiais resolvi falar sobre Júlia, mulher pobre que venceu profissional e amorosamente. Talvez seja um modo muito próprio de comemorar esse dia para tantos tão improvável (me incluo) e de desejar a todas as mulheres a força, a determinação dessa menina da Ceilândia. Encontrar príncipes encantados é para poucas, mas vencer profissionalmente e afirmar-se como ser pensante é possível para todas as estudantes deste Brasil que precisa resistir. E um viva aos enamorados de todos os gêneros!

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