Maria Lúcia Verdi –
Psicanálise beija-flor? Algo além do corpo, algo que reside num espaço entre o som e o silêncio
Haveria sob a lua
alguma coisa nova
se os calmos rios
que à noite a repetem
numa aula de constância
que o próprio fluxo esquece
recusarem sua imagem
quando anoitece.
(Jansy B. de S. Mello – INDAS E VIDAS)
Brasília - Dando prosseguimento às entrevistas que estou realizando para este site, compartilho hoje esta que realizei com a psicanalista Jansy Berndt de Souza Mello, contando com a colaboração dos jornalistas Angélica Torres Lima e Celso Araújo, aos quais agradeço.
Entrevistar alguém como Jansy é uma honra. A ela eu poderia praticamente perguntar sobre qualquer coisa, mas me concentrei em sua atividade como psicanalista, tradutora de Nabokov, esposa e mãe. Celso e Angélica proporcionam vê-la enquanto amante do teatro e mulher compromissada com a ética e a liberdade. Boa leitura!
Jansy, como mulher que desempenhou múltiplos papéis – psicanalista, formadora de analistas, ensaísta, tradutora, esposa, mãe, avó e até mesmo poeta – como se sente neste sem par século XXI?
Jansy B. S. Mello - Acho que você está tão perplexa quanto eu quanto aos novos paradigmas da modernidade porque, pelo menos como me parece estar acontecendo, as teorias, crenças e práticas sociais que vinham se mantendo e mantendo nossa civilização durante vários séculos, começaram a se esboroar para dar lugar a algo completamente novo.
Gosto de uma frase de Ian McEwan quando ele lamenta ter perdido o “conjunto concêntrico das suas identidades’ (“I valued my concentric set of identities,” no Channel 4 News, referindo-se às mudanças pelo Brexit) que lhe serviam como garantias para sua autoimagem por representarem um ritual, ou uma rotina, estabelecidos por uma fantasia particular sobre o que é dignidade, o que são verdade, sexo, família, pátria, raça, e assim por diante, que se acreditava serem a expressão comum de uma verdade única e absoluta.
Tendo sido casada com Humberto Haydt, figura emblemática e polêmica da psicanálise brasiliense, poderia nos dizer algo sobre esse casamento entre dois psicanalistas tão diversos? Acredita dispor do distanciamento necessário para avaliar a obra dele?
A dúvida está no que vem primeiro, se o meu casamento com Humberto altera ou influencia minha apreciação da obra dele ou se, ao contrário, o fato de eu ter me encantado com sua escrita me levou a ir me aproximando dele cada vez mais. Conheci o Humberto em Brasília quando eu tinha 20 anos e, como eu morava no Rio de Janeiro e ele em Brasília, os dois primeiros anos de convívio se deram principalmente através de uma intensa troca de cartas.
Nesta fase era possível receber dele, por dia, pelo menos três envelopes longos e brancos com sua letra pontiaguda e regular com mensagens que ele mesmo se encarregou de encadernar mais tarde... Naquela época ele não era psicanalista e seu estilo era apaixonante e apaixonado. Mais tarde, deixei de ter o mesmo entusiasmo pelo que ele escrevia, mas, então, ele já tinha muitos seguidores para ocuparem meu lugar.
A inteligência do Humberto era excepcional, seu talento para escrita e para poesia assim como sua habilidade clínica eram especiais. Durante mais de vinte anos acompanhei de perto sua produção, também porque datilografava seus manuscritos, pesquisava algumas fontes bibliográficas e ocasionalmente os traduzia para o inglês. Na verdade, não foi apenas o que ele escreveu mas, e acima de tudo, nossas conversas regulares o que manteve nosso casamento durante os outros tantos vinte anos.
Você considera a maternidade um desafio? Mãe biológica de três filhos e adotiva de mais três, como foi para você educar crianças e jovens?
Nunca tive tempo para considerar a maternidade como um desafio porque o movimento e o barulho em casa eram incessantes e não havia espaço bastante para pensar sobre o que se sucedia a cada instante. Ter muitas crianças e jovens em volta era divertido, cansativo e exasperante, mas, sempre, enriquecedor, porque me obrigava a uma atualização constante de tudo, desde a música popular dos mais diferentes gêneros aos programas de televisão, a vida no bairro e na escola, a força do momento presente. Por isso não tenho como resumir o que experimentei naquela fase ou como oferecer alguma conclusão significativa a partir do que vivi, nem mesmo agora quando tenho tempo de sobra para pensar no assunto. Freud dizia que educar é um dos impossíveis (os outros dois são governar e psicanalisar) e só posso concordar com ele. Segundo ele, faça o que fizer, a mãe sempre estará equivocada, o que não quer dizer que ela não faça acertos, pois as palavras erro ou acerto não recobrem o tema. Vale ressaltar que Freud não tinha a menor intenção de desencorajar as mães de disciplinarem os seus filhos. Pelo contrário, ele queria que elas confiassem naquilo que percebiam como sendo necessário para a criança sem terem que se submeter às regras estabelecidas por outras pessoas. Filhos, dizia Humberto, já nascem prontinhos como filhos, mas, os pais, tem que aprender com eles o que é serem pais. Minha vida doméstica aconteceu aos trancos e barrancos, mas sei que fiz o melhor que pude. Alegria, balbúrdia e educação...
Angélica Torres de Lima pergunta: Segundo Foucault, o incesto foi uma prática popular durante muito tempo e até o final do século XIX exerceram-se contra ela pressões sociais diversas, tendo sido sua proibição obra de intelectuais. No entanto a prática abrange diversas e antigas culturas, em que foi também proibida, mas nunca abolida, poderia se dizer que proibir não é solução, e que, consentida ou com coerção, ela se confunde com abuso sexual? Qual a posição e o papel da psicanálise nessa questão?
A pergunta demarcou bem um período da história da filosofia e da psicanálise e, portanto, vou me deter neste em especial. Não creio que Freud conhecesse as informações colecionadas por Foucault, embora ele tivesse lido extensamente os trabalhos dos pesquisadores do século passado.
O tabu do incesto nas culturas estudadas por antropólogos como Evans-Pritchard (teria que consultar a bibliografia de Freud) associava-se a um “totem” e às relações de troca entre famílias e grupos sociais distintos, favorecendo inclusive o comércio e a demarcação de territórios a partir dos casamentos que seriam “exogâmicos”. Assim, a interdição ao incesto não decorria de uma proibição acadêmica, porque ela vinha, desde os primórdios, associada ao totem e às suas leis como um dos fundamentos da organização social daquelas culturas.
Como foi apontado por Jacques Lacan, Freud fez duas leituras conflitantes a respeito do incesto. A primeira, mais antropológica, enfocada principalmente no livro editado postumamente “Neuroses Transferenciais: uma síntese” e no “Totem e Tabu”. Nestas obras ele desenvolveu a teoria a respeito do pai da horda primeva e sua relação com o totem, imprecisamente como depois se concluiu, já que Freud ignorou outras organizações sociais que não seriam ordenadas por um totem.
A segunda foi o estabelecimento da sua teoria sobre o Complexo de Édipo e as fantasias incestuosas dos filhos, fossem eles meninos ou meninas. Na teoria de Freud o tabu, ou seja, a proibição dava-se por meio da sociedade e da família e estava relacionada à figura paterna e ao que ele conceituou como sendo o Superego, “o herdeiro do complexo de Édipo”.
Quando Freud descobriu ou criou a psicanálise prevalecia a ideia dos universais na cultura e, desta forma, as angústias associadas ao momento Edípico seriam peculiares a todos os seres humanos. No entanto, quando menciono os trabalhos seminais de Freud na psicanálise, estou me referindo ao que eram, para ele, tais fantasias universais, assim como aos rumos inconscientes que estas fantasias seguiriam e, jamais, às práticas incestuosas enquanto tais.
Em relação ao incesto e o abuso sexual, lembro que a este abuso será preciso acrescentar-se a pedofilia, dada a diferença de idade entre pais e filhos, ou seja, a ocorrência de uma construção perversa que desafia os valores tradicionais da nossa civilização e que vem se expandindo de modo assustador por meio do tráfico de crianças. Como mencionei acima, nas sessões de psicanálise, aliás pouco frequentadas pelos perversos, se lida com o incesto enquanto fantasia universal, e sobre os sintomas neuróticos gerados pelas proibições do superego do paciente ou seja, em outras palavras, não se trata de uma proibição externa, mas, do efeito da censura inconsciente feita pelo superego e produzindo o recalcamento.
Sabemos que as doenças da atualidade são diferentes daquelas que deram partida às investigações de Freud e, deste modo, falar de neuroses e de recalcamento não serve para se lidar com a maioria dos problemas do mundo atual. Quanto aos múltiplos divórcios e casamentos nos quais se criam como se fossem irmãos os filhos de pais diferentes ou então, bebês de proveta de pais desconhecidos que mais tarde poderão se casar com irmãos biológicos igualmente desconhecidos, tudo isso demanda uma reformulação do que se entende por “incesto” no campo da genética e do parentesco.
Para a psicanálise não é pela biologia que se entende o que se liga ao tema do incesto, mas através da organização simbólica das famílias de pais e filhos, sejam eles geneticamente ligados ou não, como também pelas fantasias que cada membro desse grupo cultiva a respeito dos próprios familiares.
Para mim o mais chocante que vem sendo revelado pelas notícias e estatísticas atuais mais do que o incesto advém da pedofilia e do abuso da criança por um adulto, qualquer que seja ele (pai ou estranho), algo que se descobre estar acontecendo em uma escala enorme nos colégios, seminários, ginásios, vizinhança. Trata-se de uma doença social, não é mesmo? Há muito a se dizer sobre isto e muito ainda a estudar sobre aquilo que se entende a partir da disciplina psicanalítica, ou seja, essa infantilização dos homens, essa assustadora parada na sua evolução psicossexual.
Mais do que proibir - por isto ser inútil, como Angélica observa muito bem - trata-se de adquirir uma compreensão e uma maior conscientização desta patologia a partir dos múltiplos recursos e teorias que estão disponíveis, muitos surgidos graças à psicanálise.
No Brasil de hoje os suicídios, assassinatos, feminicídos e estupros são mais e mais frequentes. Os livros de autoajuda são campeões de venda, as igrejas evangélicas invadiram o país. Diferentemente das psicoterapias a psicanálise é longa e complexa. É possível se imaginar uma maior e efetiva participação da psicanálise na sociedade?
Sim, mas não da maneira como vejo algumas sociedades de psicanálise e grupos de psicanalistas tentarem fazer. Digo isso porque a psicanálise, no meu entender, descreve um tipo de método, de teoria e de filosofia bastante peculiar, que demanda uma forma de assistência dosada e discreta, como se medida em um conta gotas. Não gosto da imagem que foi proposta um dia, de um beija flor carregando água no bico para apagar um incêndio pois, do ponto de vista material, ele seria bem mais útil se convocasse alguns elefantes para essa tarefa.
No sentido desta anedota tenho para mim a psicanálise como meu beija flor, capaz de convocar rebanhos embora frágil demais para carregar o necessário para abranger e apagar incêndios. Sua utilidade social existe e é significativa, mas isto não implica numa mudança na postura clínica do psicanalista. O serviço que ela pode prestar à sociedade é quanto ao esclarecimento do funcionamento mental e do inconsciente, assim como na descrição de algumas importantes características dos indivíduos e na clarificação das dinâmicas da criança na família e na sociedade.
A psicanálise “beija-flor”, como a considero, é pouco abrangente para o atendimento aos grandes grupos humanos, o que não impede que o conhecimento de Freud por parte dos psicoterapeutas não enriqueça sua forma de atender seus pacientes, quer ao no nível individual ou no grupal.
Não entendo por que se tenta reivindicar o termo psicanálise para validar o que é feito na clínica social. Existem centenas de formas de psicoterapia, muitas de fundo analítico, que podem ser estendidas a população de modo bastante eficaz.
Em seu livro “Indas e vidas” há um poema que termina com os três versos “Quando se fala de amor\ já se tirou\ o corpo fora”. Lembro-me de um verso de Manuel Bandeira que diz que “os corpos se entendem, mas as almas não.” Penso também na afirmação do psicanalista Jacques Lacan que diz ser impossível a relação sexual. Aproximo livremente três associações - poderia me dizer algo sobre isso?
De fato, você abordou três temas nessa questão. Em um dos seus poemas Manuel Bandeira, a quem eu muito admiro, observa que os corpos se entendem e as almas não, mas eu não sei se a conclusão que se tira disso seria uma que ele próprio abraçaria, porque um momento poético não veicula uma verdade única... Também não acho que nestes versos ele escreva sobre a impossibilidade da relação sexual como proposta na conhecida frase de Lacan. Sua associação é bem instigante!
A questão vem de Lacan ser extremamente crítico quanto à prevalência da dimensão do imaginário em nossa vida, uma vez que o imaginário deveria estar em equilíbrio com as duas outras dimensões por ele descritas, o real e o simbólico. É por esse motivo, ligado ao uso excessivo do imaginário na apreensão de si próprio e do mundo, que tudo aquilo que remete à palavra “relação” (como na dita “relação sexual”), seguindo Lacan, pertence exclusivamente ao registro do imaginário, assim sugerindo esta incompletude ou até os desencontros das fantasias de cada um.
Portanto, quando os corpos se engajam no sexo as almas (estas incógnitas) gozam, sem se fundirem... Já no meu poema eu critico as palavras sedutoras relacionadas à expressão banal “tirar o corpo fora”, para me referir ao se fugir da responsabilidade daquilo que é dito na fala, mas ainda sugerindo algo que existe mais além, algo mais além do corpo... como me parece que você destacou quando escutou o poema sem os comandos da lógica.
Quando e como teve início seu interesse pela obra do escritor russo Vladimir Nabokov? Como é a experiência de traduzir uma prosa tão plena de experiências e de riqueza linguística – um russo que escrevia em inglês como muito poucos entre os próprios escritores de língua inglesa?
Meu interesse por Nabokov foi simultâneo ao meu convívio com a obra de Samuel Beckett e do psicanalista Wilfred Bion e este último foi quem me despertou para Beckett. Nabokov chegou até mim por meio do seu romance mais polêmico que é “Lolita”. Se os dois escritores diferem completamente entre eles, tem algo que partilham e isto também com Bion (de quem eu era intérprete quando vinha ao Brasil fazer seminários e conferências).
Todos três tinham em comum a insistência em dizerem ou apreenderem o indizível e de lidarem com o desconhecido, com as lacunas e os abismos. Tanto Nabokov quanto Beckett eram poliglotas e, sem ter a competência deles, consigo me expressar em várias línguas. Tive o alemão como língua materna (que eu não domino) nos primeiros anos de vida, depois veio o português e o inglês, mais uns lampejos do francês. Com isso, uma espécie de química se produziu sobre o meu modo de habitar a linguagem, mas não sei dizer qual foi.
Talvez eu possa acrescentar um outro componente, buscando entender melhor algo ligado a essa “química” e que vem associado à minha mãe musicista. Disso me lembrei agora apenas porque há pouco falei da minha língua materna. Foi graças a ela, suas cantigas de ninar de Schubert ou de Brahms, a música sempre presente a minha volta que passei a carregar comigo algo que reside num espaço entre o som e o silêncio em um campo que não é controlado pelo significado.
Apenas depois de conhecer melhor a obra de Lacan pude entender a importância do que para ele é o conceito de “significante” em Psicanálise e que faz parte deste espaço encantado. Foi também com o tempo que deixei para trás Beckett e Bion, para mergulhar não mais no mundo da Psicanálise teórica, mas envolver-me com o permanente mistério da palavra e do significante.
Fale mais sobre Wilfred Bion, psiquiatra e psicanalista discípulo de Melanie Klein que desenvolveu técnicas de trabalho em grupo, algo inovador à sua época.
Não sou seguidora de Bion, mas tive a oportunidade de conviver bastante com ele nas várias vezes que veio ao Brasil. Foi por ter mergulhado tão intensamente em seu mundo que acabei me tornando uma das suas divulgadoras. O maravilhoso na clínica de Bion vem do seu trabalho com grupos como foi por ele aplicado ao pequeno grupo formado pelo casal analítico com seu mundo interno familiar, assim como ainda da influência que sobre ele teve a psicanalista Melanie Klein, particularmente quanto ao conceito de identificação projetiva.
Para Bion as palavras eram enganadoras e mentirosas, mas ele acreditava numa verdade que se poderia apreender apesar delas, percepção esta que o levou a reformular a forma de se entender e trabalhar com a transferência em análise, desde sempre um dos pilares da teoria e prática freudianas. Para Bion há transformações que afetam não apenas o paciente como também ao analista, aliás, transformações a serem buscadas como uma das metas da psicanálise por conduzirem ao que ele chamou de “uma evolução em O” (“O” representa o desconhecido, o absoluto, o lugar da verdade última). Mais adiante elaboro um pouquinho mais sobre isso que está ligado ao que um crítico literário, Georg Steiner, chamou de “o real da presença”.
O jornalista Celso Araújo, sabedor do seu interesse pelo teatro, pergunta: Que espetáculos e dramas lhe comoveram e interessam?
Como você sabe, a partir do seu próprio convívio com ele enquanto diretor teatral, Humberto Haydt era apaixonado pelo teatro e suas obras mais importantes, já como um lacaniano “total”, são as peças da trilogia de Édipo. No entanto, nunca me envolvi nas suas produções senão como espectadora e, é claro, como ouvinte particular enquanto sua escrita ia se fazendo.
Na minha juventude eu apreciava Bernard Shaw mais do que a Shakespeare (que o próprio Shaw estranhamente rejeitava) por causa do seu humor e rebeldia. Minha admiração de jovem nasceu a partir do musical “My Fair Lady” que foi inspirado na sua obra Pygmalion. Dali as leituras e o interesse se estenderam até “Saint Joan”, “Major Barbara” e demais peças teatrais, que não vi serem encenadas, aliás.
Em seguida, me dediquei principalmente a Beckett e tive a sorte de estar no Rio durante ensaios de duas ou três das suas peças com Sergio Britto, no Teatro dos Quatro, em 1978, sempre como amadora, pouco comprometida. Tanto que tinha me esquecido que certa vez, a convite da Folha de São Paulo, participei de um debate sobre “teatro e psicanálise” a partir do filme da peça Rei Lear de Shakespeare, com Lawrence Olivier no papel do rei. Esta foi uma experiência desafiadora e com a qual aprendi muito porque, ao parar para me aprofundar por escrito sobre o tema a ser apresentado, como agora, acabei lembrando ou fazendo descobertas daquilo que não sabia que eu sabia.
Naquela época ao pensar naquilo que ligaria psicanálise e teatro me dei conta de que grande parte das minhas conclusões havia sido profundamente influenciada pela experiência que tive com Wilfred Bion - para quem a presença física do analisando e do analista, numa mesma sala, seria um componente essencial da clínica psicanalítica. Hoje em dia não sei o que ele diria sobre os atendimentos via Skype. Não faço ideia! Talvez ele aceitasse esta nova forma pela qual as pessoas se mantêm em contato virtual (mas muito sensorial) independentemente da distância que as separa.
Mas, retomando, eu via na psicanálise o mesmo componente que se obtinha durante uma apresentação teatral: a da presença física do ator e da sua plateia partilhando as “vibrações” da sua proximidade. É por isso que ainda entendo que tanto a psicanálise quanto o teatro implicam o corpo no tempo: nos dois a presença física do ator ou do analisando se oferece concretamente a uma plateia para dar voz, na atualidade da experiência, a uma visitação do passado ou do futuro, em sua expressão mais exaltada ou trivial.
O teatro antigo, como o de Shakespeare, se fundamentava na concepção, no sentido, da natureza humana apoiada na ideia do caráter sendo moldado pela vontade e pelas circunstâncias, que é peculiar ao pensamento ocidental da sua época e até bem recentemente. Mesmo assim, se nas suas tragédias, comédias e poemas ele retratou o drama do homem enquanto joguete do destino e do acaso, nelas havia ainda lugar para a revolta e para ideias como as de liberdade, beleza e progresso espiritual.
Nos tempos de hoje as pressões que nos esmagam e nos desarticulam em nada se assemelham a uma “providencia divina” ou ao “destino indiferente”, como naquelas eras, porque a força mítica ressurge agora das lideranças brutas e cegas que dela se apropriam para ganho próprio, desfazendo a dialética que nasce do confronto do humano com aquilo que é maior do que ele e do qual, mesmo derrotado, ele poderia sair engrandecido. Vejo esta ameaça atualmente como sendo, em grande parte, proveniente da luta do homem contra aquilo que o atrai para baixo, dissolvendo seus valores humanos e o conduzindo ao silêncio.