Maria Lúcia Verdi –
Fui assistir “Adubo ou como aprender a sutil arte de escorregar pelo cano” sem saber do que se tratava. Bastava saber que era do Hugo (Rodas). Fora de Brasília por muitos anos perdi várias de suas produções, entre elas esta, montada há quatorze anos e apresentada em todo o Brasil com o merecido êxito.
Como todos, abalada pelas mortes recentes de Beth Carvalho, Antunes Filho e Andrade Júnior, não imaginava o que iria enfrentar domingo à noite, exatamente após o desabafo de uma amiga narrando a morte de seu amor.
O tema central é o mais corriqueiro e universal possível, a morte. A morte vista por todos os ângulos, o trágico, o cômico, o lírico, o irônico, o grotesco, o escrachado, o refinado, o filosófico-existencial e o caricatural.
O espetáculo é uma homenagem à palavra, ao discurso, ao diálogo, construído a partir de uma notável seleção de textos, entre outros, de Sêneca, Bukovski, Nietzsche, Baudelaire, Nelson Rodrigues, Juliano Cazarré, de um grupo de Alcoólatras Anônimos e um conto indiano, incorporando-os antropofagicamente a textos e falas breves criadas pelos próprios atores.
Uma colcha de retalhos que retrata o fluxo da vida costurada genialmente por Hugo, o provocador. Um texto atemporal e aberto que a cada temporada tem a capacidade de se atualizar a partir das circunstâncias históricas em que o público está inserido.
Os fragmentos textuais se desenvolvem em cenas a partir dos diálogos de um grupo de amigos, criando uma reflexão sobre - como diz o título - uma aprendizagem, a mais difícil delas, a da aceitação da nossa efemeridade e da falta de respostas às grandes questões da existência. O público se engancha visceralmente no ritmo de cada instigante história. A lição da sutil arte é dada de todos os modos, com socos, risadas amargas, pancadas, lágrimas e apertos na garganta. É tão denso que por momentos queremos parar a cena e pedir que repitam.
Num momento em que a bobajada, a pobreza, a vulgaridade, a banalidade e a falta de inteligência estão tão presentes é alimento para a mente e a alma ver\vivenciar obras do calibre de “Adubo”. Somos adubados pela dramaturgia e pela direção da peça, pela ininterrupta demanda de compreensão, pelo apelo à nossa inteligência e sensibilidade.
Adubados por uma obra que nos remete ao que não deve ser esquecido: somos humanos, pura contradição e espanto frente à vida e à morte. Anjos e demônios, escorregamos pelo cano terrivelmente frágeis - um abismo nos encara desde o nosso nascimento. Esse abismo está desenhado a giz num enorme quadro-negro ao fundo do cenário, criado por Sônia Paiva – nele, as imagens desenhadas são apagadas e substituídas, como o que nos ocorre na vida.
A peça começa e termina com a história da morte de um cachorrinho, o Balu, inspirada no desenho Calvin e Haroldo - o que a morte do bichinho de estimação coloca para as crianças inconformadas e um pai que se confunde todo ao tentar explicar o acidente que matou o cãozinho.
A questão de Deus, da justiça divina é colocada com humor agudo e aponta diretamente para o absurdo de certas explicações que estamos habituados a ouvir e que hoje em dia produzem templos milionários. “Adubo” traz as questões que os bêbados dos bares reiteram, que a filosofia reapresenta e as crianças nos colocam. O final da peça, eminentemente poético, apresenta a única verdade inquestionável: o caráter misterioso da existência, suportável apenas com a ajuda da arte e da fantasia.
Ao perguntar a Hugo se ele fizesse hoje, quatorze anos depois, esta montagem, se ele a faria assim tão tremenda, escuto a resposta: “Sim, faria igual. Eu sou uma insolência para mim mesmo”. Uma insolência é algo fora do comum, do habitual, como um Diretor que destila o tema da morte e diz nunca ter pensado nela - em sintonia com a personagem feminina que afirma, em determinado momento, ser a vida o problema, não a morte.
Os atores são notáveis: Abaete Queiroz, Rossana Viegas, André Araújo e Pedro Martins. Realizam todas as proezas interpretativas exigidas por Hugo como numa amostragem caleidoscópica do que é a arte teatral.
“Adubo”, para mim, traz a síntese do pensamento, da lucidez tremenda e antiburguesa do uruguaio que nos escolheu. Pena que esteve em cartaz no Espaço Cultural da 508 Sul, de Brasília, apenas no final da semana passada.
Não esqueçamos que no Museu Nacional a mostra de Mila Petrillo oferece o registro fotográfico de praticamente todas as encenações que o Bruxo já desenvolveu em Brasília.
Este ano Hugo ainda nos premiará com o retorno do icônico “Saltimbancos”, e, para encerrar um ano tão surreal, a montagem de “Poema”, baseado na obra de Artaud e na questão da loucura. Nada mais oportuno.