Maria Lúcia Verdi –
Será viajar mais um dos sintomas contemporâneos? Todos estão sempre falando de uma viagem em planejamento ou que acabaram de fazer, nunca de viagens antigas coloridas pela pátina do tempo, hoje elas interessam a poucos.
Necessitando me distanciar um pouco da nossa realidade fui assistir o último filme (2018) de Jia Zhang Ke, renomado diretor chinês nascido em 1970 que já foi objeto de documentário feito por Walter Salles. O título em inglês “Ash is purest white”, traduzido entre nós como “Amor até as cinzas”, teria sido melhor traduzido como “As cinzas são do mais puro branco”, ou “A cinza é do branco mais puro”. Na sociedade do espetáculo a tradução sempre deve facilitar, por lamentáveis e incontornáveis exigências comerciais.
O título do filme remete a um momento (único) em que os dois protagonistas estão frente a uma bela paisagem, com um vulcão ao fundo, e a moça comenta ao amante (líder mafioso da cidade de Datong) que o que fica em ebulição em alta temperatura fica muito limpo, puro. O casal é separado quando a moça, jovem dançarina, vai presa por cinco anos ao disparar para o alto dois tiros defendendo seu amor de uma gang de jovens.
O filme é todo o contrário da pureza e da limpeza. Retrata um mundo feio, pobre, kitsch, sórdido, sem lei a não ser a do mais forte (aqui sinônimo de o que tem mais dinheiro). Os protagonistas vivem em um microcosmo paradigmático de um país que se escancarou ao capital, onde as misturas (sociais, políticas e estéticas) são as mais inesperadas, chocantes, quase incompreensíveis. A China é este país, um dos nossos maiores parceiros comerciais, um desafio para a compreensão ocidental.
Nos cinco anos que vivi em Pequim (2001 a 2006) vi essa transformação impressionante, a abertura às empresas estrangeiras, a entrada de Starbuck e de MacDonald`s e de todo tipo de quinquilharia estrangeira. Quando a cadeia de cafés norte-americana se instalou dentro da Cidade Proibida vi que um tempo havia acabado.
A República Popular da China (RPC) se abriu, mas jamais se alinharia automaticamente a outro país, desenvolveu um modelo muito peculiar que a faz ser, ao mesmo tempo, imperial, socialista e capitalista – modelo que muitos chineses dizem não decifrar, o de uma “forma socialista alternativa de modernidade”. Mas o Partido tem orientação e os planos quinquenais, aliados às forças de mercado desde a abertura da economia, são seguidos à risca, produzindo um desenvolvimento invejado em todo mundo.
As catalogações ideológicas “socialista”, “comunista”, “capitalista” há muito são desmistificadas na China - isto poderia ser ensinado aos que estão tentando construir um novo Brasil que nos assusta com seus radicalismos e despreparo.
Vi os chineses jovens fascinados pelo “novo” não entendendo os estrangeiros que corriam atrás de objetos e móveis antigos; as crianças chinesas (à época filhos únicos) engordando terrivelmente com hambúrgueres e sorvetes; a medicina ocidental competindo com a notável tradicional chinesa; a arquitetura milenar (os “hutongs”, casas populares) sendo destruídos sem piedade para que as cidades mudassem de cara, se aproximassem do modelo ocidental; os velhos chineses sofrendo com um modelo que não compreendiam, impactados com o consumismo, sendo que vários deles - com quem me comunicava em inglês, espanhol ou português, todos professores e artistas - desabafavam com tristeza sobre o fato de não ter sido para aquela Nova China que eles haviam se sacrificado.
O filme de Jian Zhang Ke é pontuado, em momentos chave, pelo som duro, concreto, de algo que deve ser um guindaste de demolição batendo numa construção. A destruição por todo lado construindo a Nova China e ecoando na subjetividade dos cidadãos e dos personagens. As cidades-fantasma chinesas já são cinquenta, construídas e desabitadas, o governo necessitando dar emprego aos trabalhadores e confiando no super progesso chinês – o filme de Jia Zhang Ke também trata disso.
Há uma cena engraçada no filme, ela se passa num ônibus. A protagonista escuta um passageiro contar sobre suas pesquisas, o quanto elas poderão lhe render, estimulando os demais a irem tentar a vida na província de Xinjiang (onde estive), região autônoma da RPC, com grande presença muçulmana da etnia Uigur, também chamada de Turquestão chinês.
Perguntado sobre exatamente o quê ele pesquisava responde que sobre a presença de alienígenas entre nós. Após dizer-lhe, com muita naturalidade, que já havia visto um ET a protagonista decide tentar seguir esse “pesquisador” tentando se afastar da memória de seu ex-amante. Mas, ao lhe contar que estava saindo da prisão, percebe não ser o caso.
Essa mulher que amou sem limites (daí a tradução para o português) e que o sofrimento purificara vive um momento epifânico no filme (único): vê luzes no céu que são uma nave espacial. Neste momento os espectadores pensam: ai, que bom, o filme termina assim, sonhador. Mas não, a purificação pelo sofrimento segue até um fim desolador, sem oferecer qualquer ilusão ao público.
A China que habitualmente o diretor retrata é sempre a mesma, a da abertura para o Ocidente e as transformações sociais que ela acarretou.
Nessa China ele situa histórias de relacionamentos amorosos ou familiares abalados por todo um universo desconhecido até trinta anos pelo povo chinês. A protagonista de “Amor até as cinzas”, porém, me parece ser algo além da mulher que enfrenta os horrores do submundo devido a um amor masoquista. Será ela uma metáfora da própria China que se reconstrói ciclicamente das cinzas? Será uma homenagem do diretor à sacrificada mulher chinesa? Ou será um melancólico e realista depoimento do diretor sobre a impossibilidade de uma sociedade mais justa e humana? Não sei e vale a pena ver o filme para pensar sobre isto e sobre o Brasil.
Tal como a enigmática China, o quebra-cabeças surreal que estamos vivendo vai além da nossa capacidade de decifrar ou prever. Porém, com a falta de orientação e inteligência dos titulares no poder, só por um milagre conseguiríamos desenvolver nosso país como os chineses conseguiram.
Sim, existe corrupção na China, mas se descoberta e provada não há escapatória. Sim, os direitos humanos são violados pela censura, mas o cinema e as artes visuais chinesas ganharam o mundo e falam dessa China contraditória e questionável. Sim, os trabalhadores chineses ganham muito pouco e vivem em condições difíceis, mas tem onde dormir, o que comer e enviam o que ganham para as famílias. Sim, a questão do meio ambiente é séria na China, que tem uma área muito pequena de seu território própria para a agricultura, mas o país está consciente disso, modificando leis ambientais.
Não entendo de economia, observo a política com desconfiança, mas estive por todo lado na China (com exceção do Tibet, por não concordar com a postura do governo chinês em relação àquele território) e conheço mais ou menos bem o Brasil. Nunca vi por lá o descaso com a população pobre que o atual governo incorpora.
O autoritário Partido Comunista Chinês, com 87 milhões de militantes, é sem dúvida questionável, mas e nossos partidos? O PCC tem como meta, desde sua criação, priorizar dar trabalho, alimento e educação ao povo chinês. Tem conseguido a alquimia de um liberalismo econômico que protege a economia chinesa, um socialismo de mercado que visa desenvolver o país a partir da melhora das condições de vida do povo. E lá são quase 1,4 bilhão de habitantes.
Este texto não contem respostas, assim como a realidade sugere perguntas em seu intertexto. Perguntas como a do que será do povo brasileiro se o projeto da aposentadoria proposto pelo governo for aprovado sem modificações. Serão os banqueiros e o sistema financeiro que celebrarão essa entrega, não os brasileiros.
Saí do cinema e voltei à realidade do guardador de carros aguardando uma moedinha a mais, das pessoas acampadas sob plásticos negros apoiados em paus de madeira vivendo no lixo, igualadas a seus cachorros e cavalos. A tristeza do filme me acompanhava por Brasília enquanto, protegida em um carro me perguntava quando este país realmente mudaria. Impossível sair da realidade, “viajar”.