Zuleica Porto -
“É preciso aprender a resistir. Nem ir, nem ficar, aprender a resistir”. (Julián Fucks, “A resistência”, pág. 79).
Inicio a escritura deste texto numa quarta-feira, 10 de outubro de 2018. De hoje a 18 dias, o povo brasileiro comparece às urnas para decidir o seu destino – a vida ou a morte, a civilização ou a barbárie, a liberdade ou a opressão. Há uma enxurrada de textos na internet, alguns deles memoráveis, que discorrem sobre o momento presente. Sobraria qualquer texto que me atrevesse a escrever sobre o assunto. Não sou exatamente uma conhecedora da política e seus meandros, tampouco sou cientista social, historiadora ou filósofa. Sou uma modesta estudiosa da área de Literatura, e o meu ponto de partida é o livro do Julián Fucks, ganhador do Prêmio Jabuti de Melhor Romance em 2016.
Mas não é a análise literária do romance de Fucks que me move agora. É sobre o ato de resistir. Em entrevista concedida à revista Época durante a Festa Literária Internacional de Paraty do ano passado, quando o Brasil gritava “Fora Temer”, o escritor defendeu uma “literatura ocupada”: “sinto que cada tempo pede um tipo de literatura. Hoje é o momento de uma literatura ocupada pelas questões mais relevantes do momento. Vivemos uma realidade aguda, percebemos uma tendência ao retrocesso e à violência (argumentativa, inclusive) e a literatura deve dar uma resposta a isso. (...) se deixar ocupar por esses discursos, participar desses discursos de emancipação e combate às violências que estamos vivendo”.
É bom lembrar que ainda estávamos longe, pouco mais de um ano atrás, da espiral de violência desmedida e assustadora que se espalhou pelo país nos dois últimos meses, quando uma parcela significativa da população aderiu a uma onda bárbara de culto ao ódio e à morte, brandindo armas em carreatas e votando com o cano de um revólver, espancando homossexuais, mulheres, professores, apoiadores do candidato democrata, culminando com o assassinato, com 12 facadas, de um senhor de 63 anos, Mestre de capoeira, o Moa do Katendê. Na certidão de nascimento (e no atestado de óbito), era Romualdo Rosário da Costa. Além de capoeirista conhecido e amado na Bahia, era ativista em defesa da cultura e do povo negro, atuando pela qualidade de vida da população mais vulnerável. A população que na Bahia, como na maioria dos estados brasileiros, é predominantemente negra. O crime de Moa? Declarar seu voto no candidato do Partido dos Trabalhadores.
Diante de tal cenário, Resistência é a palavra, qualquer que seja o resultado das urnas. Pois, se vitoriosos, os fascistas matarão impunemente a quem lhes aprouver. Derrotados, alimentados pelo ódio e o ressentimento, a resposta será a mesma. Portanto, cabe a reflexão: o que é resistir? Durante os anos de chumbo, quando a violência era praticada pelo Estado, houve um êxodo de pessoas, a maioria muito jovens, para fugir da prisão, da tortura e da morte. Outra leva resistiu por aqui mesmo, por escolha ou falta de.
E agora volto à citação com que abri esse artigo: o que importa não é ir nem ficar, mas aprender a resistir. E o que é resistir? Fucks faz é uma série de questões sobre o assunto: “quanto em resistir é aceitar impávido a desgraça, transigir com a destruição cotidiana, tolerar a ruína dos próximos? Resistir será aguentar a queda dos outros, e até quando, até que as próprias pernas desabem? Resistir será lutar apesar da óbvia derrota, gritar apesar da rouquidão da voz, agir apesar da rouquidão da vontade? É preciso aprender a resistir, mas resistir nunca será se entregar a uma sorte já lançada, nunca será se curvar a um futuro inevitável.”
A leitura atenta desse pequeno trecho revela, na escolha dos verbos – aceitar, transigir, tolerar, aguentar, lutar, gritar – que a passividade vai dando lugar à ação. Ele não diz o que é resistir, mas afirma o que resistir nunca será: se entregar, se curvar.
O que será resistir, cada um e cada uma descobrirá por si, aprenderá a sua própria maneira, inventará sua própria receita. Resistente desde o nascimento (quase não sobrevivo a um parto difícil, o feto que eu era entrou em sofrimento, vim ao mundo por meio de uma cesariana então rara), inventei desde cedo as minhas formas. Como amar a literatura, a escritura, contando com um olho só. A perda do outro foi uma sequela do nascimento difícil. Desfrutar das artes plásticas, da natureza como quem “come” as cores e formas.
Voltando a Fucks, lanço aqui a pergunta do escritor, com a pergunta lançada pelo escritor aos eventuais leitores de seu romance, que me alimenta nesses dias estranhos: “Quanto do aprender a resistir não será aprender a perguntar-se?”
Dedico este texto a uma vítima desta onda de intolerância e ira, Mestre Moa do Katendê