"A vida é de quem se atreve a viver".


Zuleica: "Depois da tempestade do dia 21 de Abril, da presença dos índios em Brasília, da entrevista do Lula, aguardo com muita esperança os ventos de Maio".
Ventos de Maio

Zuleica Porto –

A tempestade que desabou sobre a capital do Brasil em seu 59º aniversário causou transtornos e danos materiais, disso sabem até as pedras portuguesas que resistem nas calçadas da W3 Sul. Mas aquele domingo que relembrava, entre ovos de chocolate, a ressurreição do Cristo, o sacrifício inútil do alferes Joaquim José da Silva Xavier e a fundação de Brasília, fez surgir, com o espetáculo da chuva, um sentimento que só agora começo a identificar.                                        

Água em abundância, raios espetaculares, trovões de estremecer as vidraças, e ao final da tarde um arco-íris soberano. Parecia um ritual de limpeza da cidade, primorosamente encenado pelos elementos. A imaginação dos nossos ancestrais gerou mitos, deuses, lendas, cosmogonias para entender e explicar os fenômenos naturais. Então, posso ler assim aquela tempestade do dia 21 de abril:

  • as deusas das águas, Yemanjá e Oxum, vieram para lavar as pessoas, os bichos, as plantas, as calçadas, as avenidas, os carros, os prédios, como quem quer limpar toda a sujeira que se instalou no governo do país;
  • Iansã, rainha dos raios, cruzou os céus de norte a sul, de leste a oeste, exasperada com tanta obtusidade e escuridão existente entre os poderes que infernizam a nossa vida;
  • Xangô, em altos brados, lançou sua fúria e mandou parar com tantas ações vis e covardes, com tantos crimes contra a vida de todos os seres;
  • E o arco-íris? O arco de todas as cores, bandeira dos que não se enquadram e não aceitam a proibição de viver sua sexualidade, lembra que somos diversos, mas que na união somos todos um, somos luz.

Depois desse dia, pouco ou nada choveu na cidade. Chegou um céu azul, que gosto de chamar “o céu de Lúcio Costa”. Sob esse azul, chegaram os povos originários, unidos na APIB (Associação dos Povos Indígenas do Brasil) e nos deram de presente três dias de beleza com seus cantos, suas danças e caminhadas noturnas iluminadas por quatro mil celulares. Era o Acampamento Terra Livre, que há 15 anos acontece em Brasília, quando eles reivindicam a demarcação de seus territórios, assolados pela ganância de madeireiros, garimpeiros e das grandes mineradoras.

Mas este ano o Acampamento teve características peculiares: não se sabe que grandes ameaças apresentariam os nossos parentes com seus instrumentos musicais, pinturas corporais, cantos e discursos, mas o Estado chamou a Força Nacional para ocupar a Esplanada durante trinta e três dias.

No entanto, as lideranças indígenas conseguiram driblar o anunciado “confronto” e tudo aconteceu em paz. Não estavam ali para nenhuma guerra, somente queriam garantir o seu direito de existir. E chegaram também os profissionais da Fotografia. Céu, indígenas e a maestria dos fotógrafos; dessa união nasceram imagens memoráveis de mulheres, homens e crianças. Alguns pareciam a encarnação de Tupã, o deus criador de tudo, outras, com longas cabeleiras, lembravam Ci, a deusa das florestas, outra era a Iara, brincando risonha debaixo das cachoeiras artificiais e suspeitas do Palácio da Justiça. Sob a luz minguante de Jaci ou o brilho esplendoroso de Guaraci, tivemos três dias e noites de arte, resistência e alegria.

E depois que foram embora, nossos olhares, mentes e corações se voltaram para Curitiba. Ali acontecia a primeira entrevista do Presidente aprisionado.

Uma enxurrada de textos foram, e continuam sendo escritos, no Brasil e pelo mundo afora, sobre essa fala de duas horas. Não preciso dizer nada sobre ela. Sei que o homem, preso sem outro motivo a não ser o de impedir que voltasse a governar o Brasil, ensinou muito a quem tomou conhecimento da entrevista. Trouxe ânimo, alegria, orgulho.

Comoveu muita gente, deve ter surpreendido a outro tanto. Sem lamentos ou autopiedade, antes a indignação de quem clama por justiça. Como os indígenas, como o povo negro que não admite calado a violência e o preconceito, como os camponeses do MST que precisam de terra para viver e plantar.

Vieram os elementos enfurecidos, vieram os indígenas com a coragem de quem sabe que se não resistir deixa de existir, falou o homem que nos fez ter muito orgulho de ter nascido no Brasil.

Maio vem chegando. O dia primeiro é dedicado ao Trabalhador. Dia de luta pelos direitos de quem produz a riqueza de que poucos desfrutam. Aqui é mês de ventos que trazem o frio. Quem sabe sejam também ventos de mudança.

Aguardo com muita esperança os ventos de Maio.

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