Zuleica Porto –
Nascido e criado em Brasília, Sidarta Ribeiro é professor titular de neurociência e vice-diretor do Instituto do Cérebro da UFRN. Formou-se em Biologia pela UnB, fez mestrado em biofísica na UFRJ, depois doutorado em comportamento animal pela Universidade Rockfeller e pós-doutorado em fisiologia pela Universidade de Duke. Em O oráculo da noite nos oferece “uma breve história da mente humana pelo fio condutor do sonho”.
Considera a espinha dorsal do livro uma “teoria geral do sono e dos sonhos que compatibiliza passado e futuro para explicar a função onírica como ferramenta crucial do presente”. Sonhar, portanto, tem grande utilidade no cotidiano do sonhador, preparando-o durante a noite para a vida acordada do dia seguinte. De que forma e por quê?
Para entender as funções e razões do sonho, o autor aponta o longo caminho a trilhar: da biologia molecular, da neurofisiologia e da medicina até a psicologia, a antropologia e a literatura, sem esquecer a evolução da espécie, ou seja, toda a nossa história.
Mas não espere o leitor um texto árido e indecifrável para leigos como costumam ser os tratados científicos, pois não é só no território das ciências que Sidarta caminha; ele é escritor e amante de literatura. Com Entendendo as coisas, livro de contos, recebeu em 1996 o Prêmio Guimarães Rosa da Rádio França Internacional. O livro foi publicado pela L&PM em 1998. Enquanto escrevia e publicava artigos científicos em periódicos internacionais, também foi colaborador da revista Mente e Cérebro, com a coluna Limiar. As crônicas e artigos foram reunidos no livro Limiar – uma década entre o cérebro e a mente, publicado pela Vieira et Lent em 2015.
Então, o percurso do conhecimento sobre sono e sonhos oferece ainda o prazer de um texto primoroso e claro, quase em tom de conversa, onde não faltam as experiências oníricas do escritor e seus próximos, referências a várias obras literárias e acontecimentos históricos, e palavras que causam puro encantamento, como estas:
“Todas e todos que tiveram ideias bem-sucedidas e transformaram o mundo, aquelas e aqueles que conseguiram se transformar no que almejavam, todos sem exceção e por definição viveram os dias e as noites quando ainda não haviam realizado nada daquilo. E então sonharam.”
O autor considera que o inconsciente, constituído pela soma das nossas memórias e de todas as combinações possíveis entre elas, compreende não só tudo o que fomos, mas também tudo que podemos ser. Como indivíduo e como espécie. Alimentados por esse imenso e desconhecido inconsciente, sonhos podem não só orientar o sonhador em decisões pessoais, mas ainda gerar inventos, templos, poemas, peças musicais, estratégias bélicas, e mesmo sinalizar os rumos de acontecimentos históricos.
E vamos aos sonhos.
A máquina de costura, por exemplo, é resultado de um sonho. Seu inventor, Elias Howe, queria colocar o olho da agulha na parte de trás, como nas agulhas comuns. E então, sonhou: um rei bárbaro lhe deu 24 horas para terminar a máquina e fazê-la costurar, caso contrário a punição seria a morte. Não conseguia resolver o problema, até que foi levado à execução. Reparou que os guerreiros que o conduziam levavam lanças perfuradas no topo; acordou com a solução do problema e colocou o olho da agulha na ponta. Seu invento causou uma completa transformação na produção têxtil durante a Revolução Industrial. E como se fosse pouco, a implementação do código binário nas tecelagens inspiraria os circuitos integrados de computador. Tudo a partir de um sonho.
Em O itinerário de Pasárgada, considerada a autobiografia intelectual do poeta, Manuel Bandeira diz que foram numerosos os poemas feitos durante o sonho, mas só conseguiu lembrar de dois: alguns versos iniciais e finais de “Palinódia” e o poema “Lutador”, do qual ele lembrou quase integralmente. Foi dormir impressionado com a palavra “transverberado”, e no dia seguinte de manhã “acordo com o soneto pronto na cabeça, com título e tudo”. Bandeira diz que interpreta os dois poemas sonhados como “obra alheia”.
A mesma impressão que teve o músico Paul McCartney com a melodia de “Yesterday”; sonhada por ele, pensou que fosse de outra pessoa. Diz que durante um mês perguntou a vários conhecidos do meio musical se conheciam a melodia, até convencer-se que era de sua autoria mesmo.
Há também os “sonhos grandes”, que marcam transições de fases da vida ou grandes mudanças na vida do sonhador, como o da própria esposa do autor no início do trabalho de parto do segundo filho do casal. São sonhos repletos de simbolismos e representações poderosas, muitas vezes ecoando conteúdos ancestrais.
Durante muito tempo, sonhei com uma casa em ruínas, que eu precisava reparar. Quando li as memórias de C. G. Jung, encontro um sonho em que o pensador está em uma casa desconhecida, que, no entanto, ele considera como “sua”. Vai descendo até encontrar uma caverna e dois crânios humanos, o que o leva a entender que a casa era uma representação da consciência. Só então me dei conta de que a “casa que eu precisava reparar” era a minha psique.
Teria muito mais a comentar sobre O oráculo da noite, mas deixo às leitoras e leitores o prazer da descoberta do que se estende por quase 500 páginas. Sonhemos e, como aconselha Sidarta Ribeiro, anotemos nossos sonhos. Entre tudo que seus conteúdos podem nos proporcionar, quem sabe entre tantos sonhadores alguém tenha o sonho revelador de como sair da enrascada em que está metido nosso Brasil?
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Serviço:
Lançamento do livro: O oráculo da noite – a história e a ciência do sonho
Autor: Sidarta Ribeiro
Dia: 4 de setembro – quarta-feira – às 19h30
Local: Livraria da Travessa – Rua Voluntários da Pátria, 97 – Botafogo – Rio de Janeiro.
Editora: Companhia das Letras, 2019