"A vida é de quem se atreve a viver".


Neste novo livro, Silvia Federici trabalha com dois tempos: o dos séculos XVII e XVIII, quando mulheres foram acusadas de bruxaria pela Igreja e Inquisição, e a atual perseguição, sob a mesma acusação. É nas perseguições do passado que estão as raízes desta nova fase, que tem justificativas na religião e na misoginia.
Atrocidades contra as mulheres e os caminhos da resistência

Zuleica Porto –

Italiana de Parma, Silvia Federici é pesquisadora e militante feminista desde o final dos anos 60, quando emigrou para os Estados Unidos. Deu aulas na Nigéria entre os anos 80 e 90 e atualmente é professora na Universidade de Hofstra, em Nova York.

Em Mulheres e caça às bruxas ela retoma e amplia o tema abordado em seu livro anterior “Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva” (tradução brasileira do Coletivo Sycorax, Ed. Elefante, 2017).

O novo livro é uma coletânea de ensaios, destinado a um público mais amplo, dividido em duas partes. Na primeira, a autora detém-se sobre dois aspectos já abordados em Calibã: a relação entre o processo de cercamento de terras e a caça às bruxas, e a relação entre esta caça e o cerceamento do corpo feminino por meio do controle social sobre a capacidade reprodutiva das mulheres. Mas não só: ela também discorre sobre outros temas, como o medo que o poder feminino provoca nos homens. Na segunda parte, os ensaios abordam as novas formas de violência contra as mulheres e as novas formas de acumulação capitalista.

Cercar, cercear, caçar

Federici sustenta que os cercamentos de terras, e, de maneira mais ampla, o surgimento do capitalismo agrário a partir do século XV na Europa oferecem um pano de fundo social para compreendermos a razão de muitas das acusações contemporâneas de prática de bruxaria e a relação entre esta perseguição e a acumulação de capital. Ela alerta que não está sugerindo que a relação seja determinante de todas as “caças”, atuais ou passadas, mas apenas em condições históricas específicas.

A autora trabalha com dois tempos: o dos séculos XVII e XVIII, quando mulheres foram acusadas de bruxaria pela Igreja e Inquisição, e a atual perseguição, sob a mesma acusação. É nas perseguições do passado, afirma Silvia Federici (na foto, abaixo), que estão as raízes desta nova fase, que tem justificativas na religião e na misoginia.

Ela aponta a singular relação entre o desmantelamento de regimes comunitários e a demonização de integrantes dessas comunidades, que torna a “caça” um instrumento de privatização econômica e social. Volta ao surgimento do capitalismo agrário para apontar as características das “bruxas inglesas”: eram mulheres pobres que resistiam a essa pauperização, demonstrando ressentimento e comportamento agressivo (derrubando as cercas, atacando cargas de grãos que seriam exportados enquanto a população passava fome); eram consideradas libertinas ou promíscuas, por adotarem condutas sexuais consideradas fora da norma (sexo sem casamento, adultério, aborto); ou eram curandeiras, parteiras, praticantes de saberes ancestrais. Eram populares na comunidade, mas ameaçavam as estruturas de poder local, que se opunham a qualquer forma de poder popular. Dessa forma, as mulheres deviam ser confinadas a uma posição social de subordinação aos homens, e qualquer afirmação de independência feminina era punida com severidade – entenda-se fogueira ou forca.

Queimando ou enforcando bruxas, as autoridades puniam, de uma só vez: as investidas contra a propriedade privada; a insubordinação social; a propagação de crenças mágicas, que desencadeavam poderes incontroláveis; e o desvio da norma sexual, pois queriam a sexualidade e a procriação sob o domínio do Estado. O cercamento, portanto, era não só de terras, mas do conhecimento (matando os saberes ancestrais, que passam a ser considerados “superstições”), do corpo e das relações com o outro e com a natureza. Impondo um novo código ético e moral, qualquer forma de poder independente do Estado ou da Igreja era considerada coisa do Diabo, a ser punido com o fogo mais temível que o das fogueiras, pois eterno: o fogo do Inferno. Só a submissão ao homem e a aceitação do lugar a ela imposto pelo capitalismo as salvaria, não só do carrasco ou da fogueira, mas da Danação Eterna.

Tempo presente: perseguições e resistências

Assassinatos de mulheres, nos campos ou nas cidades, têm aumentado assustadoramente no Brasil. Dados do IPEA apontam 4.936 assassinatos de mulheres no ano de 2017, sendo 66% mulheres negras. Em fevereiro deste ano, já eram 126, segundo o Conselho Internacional de Direitos Humanos.

Para Silvia Federici, é cada vez mais evidente que as causas da atual violência contra a mulher são as novas formas de acumulação de capital: desapropriação de terras, desmantelamento das relações comunitárias e a intensa exploração dos corpos e da mão de obra das mulheres. A globalização, que ela define como um “processo político de recolonização destinado a entregar ao capital o controle sobre a riqueza do mundo natural e o trabalho humano”, não pode ser alcançado sem atacar diretamente as mulheres, diretamente responsáveis pela reprodução de suas comunidades. Por isso a violência é maior na África subsaariana, na América Latina e Sudeste Asiático, regiões ricas em recursos naturais e onde a luta anticolonial tem sido forte. Somente no continente africano, 23 mil “bruxas” foram assassinadas entre 1991/2001. Na Tanzânia, mais de 5.000 mulheres consideradas bruxas são assassinadas por ano, a golpes de facão, enterradas ou queimadas vivas. A situação não é melhor na Índia, no Nepal, na Arábia Saudita.

A espetacularização dessa violência é uma “crueldade pedagógica”, aponta a estudiosa Rita Segato, citada por Federici. Segundo a antropóloga argentina, o objetivo dessa cruel pedagogia é aterrorizar primeiro as mulheres, e depois toda a população, pois à rebeldia não caberia nenhuma forma de compaixão. A esse respeito, impossível não lembrar o que se passa no Brasil de hoje, onde um governo foi eleito sob o símbolo de armas empunhadas contra tudo o que é liberdade, conhecimento e arte. É o reinado da “masculinidade tóxica”, no qual uma grande atriz, ao posar de bruxa numa revista como protesto contra a perseguição aos livros, é dita “sórdida e mentirosa” por um preposto do homem que dorme com uma arma na cama.

É uma violência espetacular e impune, planejada como a poluição de cursos d’água com elementos químicos letais por parte das mineradoras. É só lembrar os episódios de Mariana e Brumadinho no Brasil. Para não falar no espetacular incêndio na Floresta Amazônica, que até as pedras sabem ter sido criminosamente promovido por interessados no plantio de soja e criação de gado para exportação.

Portanto, a violência contra as mulheres, no entender de Silvia Federici, é um elemento-chave também para entendermos o papel das mulheres como mantenedoras de comunidades coesas, bem como de defender noções não-comerciais de sobrevivência e abundância. Em entrevista concedida a Bianca Santana em 2017, Federici diz que “a mulher está na linha de frente das resistências contra o capitalismo, o extrativismo e o neoliberalismo”. É bom lembrar que, este ano, Brasília foi palco de uma manifestação que uniu indígenas e camponesas: 2.000 indígenas, representando 120 povos, realizaram sua primeira marcha sob o lema “Território – nosso corpo, nosso espírito”, para depois juntarem-se a cerca de 100 mil camponesas, na “Marcha das Margaridas”. São as mulheres lutando, como diz Federici, para “proteger florestas, mananciais de água e tudo o que é bem comum”, e contra o controle de seus corpos e de seu pensamento.

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Serviço:

Livro: Mulheres e Caça às Bruxas

Autora: Silvia Federici

Tradução: Heci Regina Candiani

Editora: Boitempo

160 páginas

Preço de capa: R$ 37,00

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