"A vida é de quem se atreve a viver".


Nas aulas de Merlí, a garotada aprende que pensar pode doer, mas conduz à liberdade possível.
Merlí: Estripulias filosóficas

Zuleica Porto -

A série Merlí está sendo exibida pela Netflix e é uma produção da TV da Catalunha(*).

Atena, deusa da sabedoria, na figura de uma coruja branca, observa a noite cair sobre Barcelona. O dia nasce, e mais uma aventura começa no Instituto Àngel Guimerà. É o palco onde o professor de Filosofia Merlí Bergeron bagunça o tédio de meninos e meninas do segundo ano do bacharelado, dos demais professores e até dos pais dos “peripatéticos”.

O batismo da turma acontece no primeiro dia de aula: Merlí leva todo mundo para fora da sala, seguindo o modelo do velho Liceu aristotélico.

Caminhar e pensar sempre combinaram maravilhosamente, então por que a escola segue enclausurando a juventude? Será porque a instituição não tem o propósito de formar cidadãos e cidadãs livres, mas sim de criar seres bovinos, conformados com o destino de produzir e consumir? Por que tem que ser tedioso o ambiente escolar e os conteúdos enfiados na cabeça dos estudantes sem que se saiba para que servirão na vida da criatura, além de conduzirem à posse de um certificado ou do aspiradíssimo diploma?

Quem sabe para que a manada siga, entre trabalho e consumo, repetindo pensamentos pré-moldados, frases feitas, lugares-comuns. Poderíamos fazer uma longa lista desses pensamentos organizados, imutáveis, que perpetuam preconceitos. Mas não cabe aqui, e um bom exercício seria que cada eventual leitor (a) elaborasse a sua, observando o que dizem parentes, vizinhos, professores, amizades. Deixo aqui um aperitivo: “meninos são turbulentos e inquietos por natureza, meninas são calmas e ajudam as mães”.

Nas aulas de Merlí, a garotada aprende que pensar pode doer, mas conduz à liberdade possível. A cada episódio, um pensador ou pensadora é o mote para debater as questões que atormentam a juventude, na passagem da vida adolescente para a idade adulta. São tantas, das complexas variações da sexualidade ao dilema de sair ou não da casa dos pais, trabalhar ou estudar?

Ivan não conseguia sair de casa, Merlí se oferece para ser seu professor particular. E é a partir do mito platônico da caverna que, passo a passo, vai levando Ivan de volta ao Instituto. Bruno, o filho que ele mal conhecia e com quem passa a morar, angustia-se por gostar de meninos. E desenrola-se a cena que considero a mais poética e delicada da série que está virando mania: não faz discursos grandiloquentes, diz apenas que “o amor tem muitas formas”, dá um exemplar de “O banquete” ao menino, e os dois começam a ler, cada um seu exemplar, lado a lado. Mais adiante, um episódio dedicado a Freud discute mais filigranas do desejo humano.

Mentir ou dizer a verdade? Questionam-se os “peripatéticos”. E o professor abre a discussão sobre o imperativo categórico kantiano. Joan gosta de Monica, ela também gosta dele, mas o excessivo controle com que os pais dele cercam o casal sufoca e estraga o namoro. Nada melhor que Engels e a crítica à família burguesa, que embora tenha mudado do negócio que era no século XIX para o modelo baseado no amor, continua opressiva, por mais “modernos” que sejam os casais.

Pol, de família operária, é o melhor aluno de filosofia, mas precisa trabalhar para ajudar em casa e pensa em não seguir os estudos na universidade. Qual o filósofo do episódio? Marx, obviamente. Uma professora trans aparece para substituir uma professora de licença e entra Judith Butler e a teoria sobre gênero. Questionamentos sobre a felicidade introduzem o pensamento taoísta de Lao-Tsé.

O personagem interpretado por Francesc Orella não é um herói. Longe disso. Merlí, abandonou a mulher quando Bruno era pequeno, manipula seus colegas, rouba uma prova de Catalão para facilitar a vida do filho, mente para a mãe, enfim, apronta várias.

Tampouco é o que se poderia chamar de galã. Talvez aí esteja o seu grande encanto: tem fraquezas, contradições, falhas, às vezes quebra a cara. E, como na conhecida canção de Vanzolini, “sacode a poeira e dá a volta por cima”. Não só conquista a simpatia da turma, mas consegue fazer com que meninos e meninas, mais do que decorar conceitos, aprendam a pensar com suas próprias cabeças.

Nada mais refrescante do que mergulhar nos matizes do comportamento humano para fugir da dura dicotomia reinante neste novo medievo em que vivemos. Nada mais oportuno que perguntas, dúvidas e questionamentos, quando todo mundo se acha o dono da resposta certa.

Não se pode esperar de uma série de televisão que aprofunde pensamentos complexos, nem é este o propósito. Nem que de repente saia todo mundo por aí lendo Kant, Nietszche ou Freud, ou que os cursos de Filosofia passem a ser os mais procurados por quem está ingressando na Universidade.

Mas quem sabe as aulas televisivas de Merlí consigam despertar algumas mentes inquietas para o exercício do pensar. Que é prazeroso, sim. E excitante.
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(*) Merlí é uma série de televisão produzida pela TV3 - Catalunha - sobre um professor de filosofia que, usando alguns métodos pouco ortodoxos, incentiva seus alunos a pensar livremente. Realizada em 2015, em direção de Héctor Lozano. Roteiro de Eduard Cortés, e o ator Francesc Orella no papel de Merlí. Gravado na língua catalã e exibida pela Netflix.

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