Zuleica Porto -
“Na verdade, não era eu que estava querendo dar uma de guru, a garotada é que estava precisando de um guru, isto é, de uma nova maneira de viver a vida e de ver as coisas.” (todas as citações do autor estão em "O negócio é o seguinte", Maciel, Editora do Pasquim, 1981)
Assim Luiz Carlos Maciel (1938-2017), filósofo, escritor, jornalista e roteirista explica o sucesso de sua coluna “Underground” no Pasquim do final dos anos sessenta. Em 1970 editou e publicou seus textos sobre a contracultura na Flor do Mal, periódico de curta vida mas que em cinco edições chegou a ter impressos quarenta mil exemplares. Impressionado com a “avalanche de cartas, principalmente de jovens, muito sinceras, derramadas e desarmadas. (...) falavam tudo, de suas neuroses, angústias, aspirações. Tudo projetado em cima dessa possibilidade que vislumbravam de se viver de uma maneira diferente”.
Nunca escrevi cartas ao Maciel, mas era uma leitora assídua de Underground, e as edições da preciosa Flor do Mal estiveram guardadas comigo até outro dia, quando um vazamento de água no armário onde estavam as deixou mofadas e imprestáveis. Nascida em 1952, fui e ainda sou partidária de levar a vida “de uma maneira diferente”. Que vida diferente seria essa?
Era a aspiração de mudar o mundo, inventar uma maneira nova de viver, para além dos modelos velhos de família, de morar, de pensar. E o Maciel, com sua prosa boa, ia ensinando tudo que sabia do movimento que fazia furor lá fora. Os estudantes que fizeram em Paris o Maio de 68 escreviam nos muros: “é proibido proibir”, “a imaginação no poder”. Nos EUA, os negros lutavam pelos direitos civis, as mulheres erguiam a bandeira do feminismo, rapazes recusavam a participação como soldados na guerra no Vietnam.
Citando Maciel: “Era uma situação concreta do país e do mundo, uma situação concreta do desenvolvimento da humanidade, que estava exigindo que alguma coisa acontecesse. Alguma coisa que desmentisse toda a estrutura da vida civilizada do nosso tempo. Que dissesse que tudo aí é mentira. Alguma espécie de volta a uma visão mais direta das coisas e a uma maneira mais primitiva de viver. Uma espécie de volta à natureza”. Os adeptos dessa nova “alguma coisa” eram considerados hippies, desbundados, porras-loucas ou bichos-grilos.
Chegada em 1971, foi nessa tribo que armei a minha rede cearense. Então nós, os desbundados de Brasília, éramos assim: recém-chegados na cidade nova, dividíamos repúblicas, que eram muitas.
Vínhamos dos diversos estados do Brasil para estudar na UnB, onde nos conhecemos. E daí se formava uma república, que para funcionar, precisava da afinidade de gostos e modo de viver entre os moradores. Ninguém tinha telefone, mas vivíamos nos visitando, caminhando pela cidade árida porque as árvores ainda não haviam crescido.
Explorando as cachoeiras próximas, o Pipiripau, o Poço Azul, fazendo acampamentos precários, em que as “barracas” eram às vezes feitas com uma toalha de plástico e uns paus que achávamos por ali. Discos, livros, os poucos pertences de cada um eram de todo mundo.
Nas repúblicas não havia TV, mas o toca-discos não podia faltar. E as estantes improvisadas com tijolos e ripas de madeira abrigavam, entre muita literatura, os pensadores da contracultura: Reich, Marcuse, Leary e dois psicanalistas brasileiros que fizeram a cabeça de muita gente: Roberto Freire (não confundir com o político homônimo safado) e José Ângelo Gaiarsa.
Mesmo sem dinheiro, dávamos um jeito de ir ao cinema, que em tempos de censura ofereciam cópias mutiladas de obras como Laranja Mecânica, em que bolinhas pretas saltitavam atrás de seios e genitais, transformando um filme tenso e trágico em comédia, arrancando gargalhadas. Mas Zabriskie Point, de Antonioni, passou incólume pelos insondáveis critérios dos censores, que não se incomodaram com a explosão psicodélica do Pink Floyd.
Éramos todos de esquerda, admirávamos e torcíamos muito pelos militantes das organizações e partidos clandestinos, que arriscavam (e muitas vezes perdiam) a vida na luta contra a ditadura. Mesmo sem saber, nossa resistência se dava na maneira de viver.
E incomodávamos muito os ditadores, o que descobriríamos perplexos quando uma escalada de prisões (que melhor seriam definidas como sequestros) desmantelou a maioria das repúblicas. Mas esta é outra história, que trouxe o lado sombrio para aquela vida de comunidade, vestidinhos floridos, almofadas e samambaias nas salas desprovidas de móveis.
Sobre este lado assombroso, da insana repressão, vale muito a pena conhecer o olhar do escritor manauara Milton Hatoum, que este ano, o mesmo da morte do Maciel, lançou A noite da espera, primeira parte da trilogia sobre os anos duros que nos deram os generais. Aliás, alguns personagens desse “roman à clef “eram habitantes das repúblicas que a ditadura invadiu de arma em punho.
Herdeiros tardios de Thoreau, a gente sonhava com um novo Walden para onde levar “amigos, livros e discos, e nada mais”, como dizia a canção de Sá e Guarabira. Utopias, como sabemos, existem desde os gregos antigos, com Platão e sua República. Mas com o nome de “não-lugar”, a primeira foi a de Thomas Morus, publicada em latim em 1516.
Na ilha de Utopia, não se podia prejudicar ninguém em nome da religião; a intolerância e o fanatismos eram punidos com o exílio; havia harmonia entre os diversos credos; todos viviam em paz e o parlamento zelava pelo bem do povo; a propriedade individual e o dinheiro eram incompatíveis com a felicidade. Continuam sendo, me parece óbvio.
No entanto, os que mandam no mundo continuam apostando no poder do dinheiro, na opressão por meio da religião, da escola, do modelo tradicional de família, na repressão como forma de manter o poder de poucos sobre muitos. Hoje, no Brasil, como nunca, resguardados por uma “democracia” de aparência que tudo permite quanto à supressão de direitos e liberdades.
Mas a utopia resiste, como não? As questões que levantavam os adeptos da contracultura continuam valendo, era o que dizia Maciel em 1981: “A contracultura foi uma coisa que as cabeças desvairadas e loucas dos jovens criaram (...) em face de necessidades concretas, reais, que estavam atravessando.
É também certo que, na medida em que as condições vigentes da nossa vida em comum continuaram sendo neurotizantes, repressivas, uma outra coisa parecida acabe por surgir. Naturalmente não vai ser igual, não vai ser hippie. Vai ser uma outra coisa, ainda sem nome, que deverá surgir simplesmente porque é assim o processo natural da realidade. Ao criar as doenças, cria também certos antídotos.”
A outra coisa sem nome se anuncia, acredito, neste século ainda jovem. As minorias se organizam, em busca de direitos e espaço para viver e respirar.
Por enquanto, fracionadas em diversos movimentos: sem-terra, sem-teto, negros, negras feministas, feministas simplesmente, LGBT, indígenas, quilombolas, defensores da agricultura familiar, cadeirantes, pedestres e ciclistas, só para citar alguns. São inúmeros coletivos, associações, grupos, que divulgam ideias e acontecimentos usando as múltiplas possibilidades oferecidas pela internet. Por enquanto, resistindo para conseguir existir. Mas sonho que, no dia em que todos se unirem em um grande e solidário movimento, a utopia deixará de ser utopia. Sonho demais?