"A vida é de quem se atreve a viver".


O Mercado de Peixe, na beira do mar, fervilha de gente: os que trabalham, os que compram, num entra-e-sai dos pequenos barcos que chegam e partem o tempo todo
Cabo Verde - quatro ilhas em duas semanas – parte 2

Zuleica Porto -

“São Vicente é um brasilin”, cantarolavam em Mindelo quando sabiam que havia dois brasileiros em nosso grupo. A canção que celebra a semelhança entre as folias cabo-verdiana e brasileira é um dos tantos sinais da forte presença da “Diva dos pés descalços” (Cesária Évora) na capital da ilha onde nasceu e morreu.

O aeroporto tem seu nome e sua estátua na entrada. A primeira noite que passamos na cidade foi embalada pelas mornas e coladeiras que ela divulgou para o mundo, cantadas nos bares que circundam o Porto Grande.

Quase todo o Mindelo parece se amontoar ali, de frente para o Monte Cara, assim chamado porque lembra um rosto, de perfil, olhando o céu. O Mercado do Peixe, na beira do mar, fervilha de gente: os que trabalham no trato do pescado, os que vendem, os que compram, num entra-e-sai dos pequenos barcos que chegam e partem o tempo todo do trapiche ali do lado.

Há uma curiosa miniatura da Torre de Belém lisboeta, onde funciona o Museu do Mar. Há marinheiros de tudo que é latitude – vimos eslavos, indianos e um chinês bêbado carregado por outros chineses só um pouco menos bêbados.

Há uma pracinha linda com um coreto, é a Praça Amílcar Cabral, mais conhecida como Praça Nova. Assassinado em 1973, o líder na luta pela libertação da Guiné-Bissau e Cabo Verde também dá nome a uma Avenida na Praia. E imagino que a outros locais pelo arquipélago afora.

A juventude ainda faz o “footing” na praça, vestindo as melhores roupas e calçando tênis de cores vibrantes. Entramos numa lojinha de artesanato onde uma miscelânea de objetos era vendida por moças que, ao mesmo tempo, faziam os mirabolantes penteados, entremeados de fitas e outros enfeites.
Fomos ao Museu de Arte Tradicional, fechado por causa da chuva forte que caíra na noite anterior. Pelo visto, o caos que ela causou em nosso hotel, com vazamentos e queda de energia, se espalhou pela cidade.

Mas batemos na porta, segundo recomendação da vizinha, e uma moça abriu só para nós o casarão, que abriga várias exposições de artistas locais, incluindo esculturas encantadoras feitas com pedras vulcânicas. Mea culpa, não anotei o nome do autor...

Logo depois do porto tem uma praia, a Laguinha, muito limpa e de ótimas águas para banho. E de novo, tarde afora, muita gente tomando banho num cantinho do mar ou brincando nos gigantescos tobogãs infláveis colocados na água.

E ali pertinho a Estação dos ferry-boats que ligam São Vicente a Santo Antão, a última ilha do nosso roteiro.

Chegando ao Porto Novo, a balbúrdia dos motoristas de “alugueres”, aos gritos em busca de passageiros, até assusta o visitante. A maioria dos turistas, raros nessa época do ano, segue para a Ribeira Grande ou Ponta do Sol, cidades à beira-mar.

Delas nada posso dizer, pois nessa ilha escolhemos subir até o Lombo da Figueira, situada entre o centro e o norte, na parte mais verde da ilha, e também do arquipélago.

Enquanto Santiago, Fogo e São Vicente lutam com a escassez de água, Santo Antão goza de uma relativa abundância, tanto que durante muito tempo fornecia água para o Mindelo. No lado sul, descendo para o Porto Novo, a paisagem é desértica, e tal diversidade é um rico cenário para filmagens, comentou alguém do nosso grupo.

A população, distribuída em casinhas perdidas entre as escarpas, cultiva banana, mamão e muita cana-de-açúcar, com a qual fabricam o famoso grogue, o aguardente do Cabo Verde. Ali desconhecem a rapadura, como descobriram os nossos que se aventuraram nas pirambeiras rumo à Ribeira Grande. Os italianos que nos hospedaram cultivam uvas em cooperativa com os nativos do lugar.

Embora entendam pouco o português (não sei dizer por que, umas meninas me saudaram em francês), as pessoas ali também cultivam a morabeza – a gentileza da gente caboverdiana, cantada nas letras de mornas, coladeiras, batuques e funanás.

Genoveva, a cozinheira da hospedaria, é uma prova do que digo. Mal se dava conta da excelência de sua comida, e agradecia, tímida, os elogios.

Chovia muito quando deixamos o Lombo da Figueira. A saudação de despedida foi um balé enlouquecido de nuvens, água e muito vento. Descendo, a chuva deu lugar ao calor; e o verde, à aridez.

Teria ainda muito a dizer, embora os dias tenham sido poucos para conhecer de verdade o Cabo Verde. São dez ilhas, uma delas, Santa Luzia, desabitada.

Quero ainda conhecer a Brava, Maio e São Nicolau. E rever as ladeiras de São Filipe, o povo de Chã das Caldeiras, as casinhas da Rua de Banana, na Cidade Velha.

Quero de novo me confundir com os nomes de ilhas e cidades, são tantos Santos, tantas Ribeiras, tantos Portos. Mas pouco me interessa conhecer Sal e Boa Vista, pois nelas já se instalou o turismo dos resorts e a desigualdade que o caracteriza. Quem nos contou foi o Augusto, que nos hospedou em São Filipe e para mim se tornou o símbolo da decantada morabeza.

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