"A vida é de quem se atreve a viver".


Zuleica: "Lula Marques revela que Dilma tem o mesmo olhar da fotografia de três décadas passadas: triste e decidido. Melancolia e coragem. Sombra e luz, a essência mesma da fotografia".
O olhar e a travessia

Zuleica Porto –

Para Eduardo Coutinho (São Paulo, 1933 – Rio de Janeiro, 2014).

O olhar é o de Dilma Rousseff, flagrado quando ela compareceu diante da plateia que lotava o Teatro dos Bancários em Brasília, no dia 28 de agosto de 2016. Seria a última vez que ela se apresentaria em público como Presidenta do Brasil.

Naquela noite, o fotógrafo Lula Marques condensou para a História o olhar de Dilma em dois momentos de sua vida política.

O primeiro, em uma fotografia ampliada num grande painel no fundo do palco do Teatro, no momento em que a então jovem resistente à ditadura instaurada em 1964 estava diante do Tribunal Militar (1970).

O segundo, o da senhora Presidenta, que no dia seguinte seria interrogada por outros inquisidores, os senadores que votariam pelo seu impedimento no nefasto dia 31 daquele mês.

O registro de Marques revela que Dilma tem o mesmo olhar da fotografia de três décadas passadas: triste e decidido. Melancolia e coragem. Sombra e luz, a essência mesma da fotografia.

Há não muito tempo atrás, era no escuro dos laboratórios que as imagens eram reveladas. “Relógios de ver” é como Roland Barthes denominava as antigas máquinas fotográficas, e o gemido do diafragma era a única coisa de que gostava ao ser fotografado.

Para ele, este era “o barulho do tempo” que, imobilizado na fotografia, traz o passado ao presente de quem vê.

O fotógrafo anônimo imobilizou o tempo e trouxe o passado para o nosso presente, para que Lula revelasse para o futuro a tristeza e a valentia de Dilma Rousseff.

Retorno ao autor de “A câmara clara”, quando ele diz que o choque fotográfico está em mostrar aquilo de que o próprio autor estava inconsciente.

Diz Barthes que “a fotografia tem esse poder, de olhar direto nos olhos e revelar o que está oculto”.

O encontro dos dois olhares, a expressão que permanece, não poderia ser prevista pelo fotógrafo do passado, a não ser por uma capacidade mágica de ver o futuro da que sobreviveria às torturas para ser a primeira mulher a governar o Brasil e ser deposta por mais um golpe de Estado, o que hoje estamos a sofrer.

Quanto à foto de Lula Marques, ele é quem pode dizer se o momento feliz se deve ou não ao acaso.

Se a fotografia congela o tempo, o cinema, como diz seu próprio nome, é movimento. No dizer de Barthes, no cinema os personagens passam diante do pequeno orifício e seguem seu caminho, continuam a viver.

É, portanto, trajetória, ou travessia. Pego emprestada de Guimarães Rosa a palavra para contar um pouco dos caminhos percorridos por dona Elizabeth Teixeira e sua prole, segundo o cineasta Eduardo Coutinho.

Ela, viúva de João Pedro Teixeira, líder das Ligas Camponesas assassinado em 1962, em Sapé, Paraíba. Ele, um dos maiores cineastas do nosso tempo.

Os filmes são dois. O primeiro, “Cabra marcado para morrer”, nasceu em 1962, quando Coutinho, então um jovem militante do Centro Popular de Cultura da UNE, registra o comício em protesto pelo assassinato de João Pedro. É quando ele conhece Dona Elizabeth.

Vale a pena recordar a trajetória do próprio filme, sujeita a sobressaltos e mudanças de rumo e forma.

As filmagens tiveram início na Paraíba, no começo de 1964. A narrativa do diretor conta que o roteiro inicial seguia os ditames “típicos da nossa cultura naquele tempo”.

Buscava conscientizar o espectador sobre a miséria reinante no país, com um discurso didático e a famosa “canção da UNE”, que bradava “somos um país subdesenvolvido / subdesenvolvido, subdesenvolvido”.

Dona Elizabeth e os companheiros de João Pedro encenariam suas próprias vidas e o assassinato do líder camponês.

Em 15 de março, um confronto entre os lavradores e a Polícia desloca a equipe para o Engenho Galileia, em Pernambuco.

Continuam a filmar, e são novamente interrompidos em abril, quando parte da equipe e dos lavradores é presa, sob a acusação de “comunismo”, e o restante se dispersa.

Os 11 filhos de Dona Elizabeth e João Pedro Teixeira são espalhados entre parentes e ela entra na clandestinidade, adotando a identidade de Marta Maria da Costa. Muda-se para o Rio Grande do Norte.

Em 1981, quando o Movimento pela Anistia sacode o país numa onda de esperança, Coutinho retoma a ideia. Localiza alguns dos antigos camponeses, Dona Elizabeth, que reassume sua verdadeira identidade, e alguns dos filhos.

É um novo filme, o primeiro de uma série que colocou Coutinho entre os grandes cineastas do mundo.

Sua pegada é profundamente humanista. O diretor é também personagem que se mostra perguntando, contando, comparando suas lembranças com as dos outros.

Cresce a figura de Dona Elizabeth, que narra a trajetória que percorreu no decorrer dos 17 anos transcorridos.

E mais não conto, pois o texto já se alonga demais. Para quem não viu, o filme está disponível no Youtube (veja aqui https://www.youtube.com/watch?v=JE3T_R-eQhM ).

Incansável no resgate da memória, pouco antes de morrer Coutinho retoma a saga dos Teixeira. Sai em busca dos filhos de dona Elizabeth, que não encontrava desde 1984.

Com ela, esteve sempre em contato. Sabemos então da travessia de cada um, de cada uma. Diversos sotaques, profissões, discursos. Um é médico formado em Cuba, outra, professora, comerciantes, operário, dona de casa.

Há quem mantenha os laços, entre si e com a mãe. Duas filhas, levadas pelas mágoas e ressentimentos do passado, distanciam-se dela e do restante da família.

Coutinho aconselha a reconciliação, principalmente com a idosa dona Elizabeth, que aos 88 anos continua firme na saúde e nos ideais: reforma agrária, salário digno e educação para todos.

O ciclo se fecha com a neta, Juliana Elizabeth Teixeira, professora de História na Sapé em que foi morto o seu avô. É a guardiã do Memorial das Ligas Camponesas e do modesto Monumento em homenagem a João Pedro.

Conta que todos os anos, no aniversário de morte dele, faz-se uma caminhada entre os dois lugares de memória. Seu nome une o da avó ao criador das Ligas Camponesas, Francisco Julião.

Observo que Coutinho recorre sempre às fotografias antigas para refrescar a memória e suscitar a narrativa das lembranças dos entrevistados. Cinema e Fotografia. Tempo e Espaço. História e Memória.

Por fim, deixo minha lembrança afetiva do grande diretor a quem dedico este texto: fui aluna dele em um curso de curta duração: direção e roteiro no documentário.

Quando nos mostrou seu filme então mais recente, “Santa Marta – duas semanas no morro”, quase não acreditei na pergunta que fez ao final: “Então, o que vocês acharam?”

Mas o que mais me comoveu foi perceber que ele usava a mesma bolsa de couro das filmagens de “Cabra marcado para morrer”.    

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