Zuleica Porto -
“Na capital federal, o arrivismo é sôfrego e incontido, cada um por si e os sucessivos governos republicanos a favor dos privilegiados. Distribuem-se à farta nomeações, indenizações, concessões, garantias, subvenções, favores e proteções. Ao se iluminar a generosidade do governo nacional, aclara-se a sofreguidão do luxo, do desperdício, da ostentação e do triunfo republicano. Não há amanhãs, há o já e já. É tempo de cavação”.
Retirei a citação acima do livro Machado – romance, de Silviano Santiago, publicado pela Companhia das Letras em 2016.
Os governos republicanos a que se refere o autor eram os primeiros da república, e a capital federal, o Rio de Janeiro. O bruxo africano do título é ele mesmo, nosso maior escritor, em seus últimos anos de vida.
Era então o Rio do “bota abaixo” do prefeito Pereira Passos, que demolia os casarões coloniais do Centro para rasgar no espaço vazio a moderna Avenida Central, hoje Rio Branco.
Os antigos moradores, desalojados mediante uma notificação da prefeitura, constroem suas casinhas, com o lixo das demolições, nas encostas dos morros, da Providência ou da Favela.
Os telhados, de zinco ou de folhas de lata de querosene, ainda são os mesmos por volta de 1937, quando Orestes Barbosa e Silvio Caldas compõem “Chão de estrelas”: “a porta do barraco era sem trinco / e a lua furando nosso zinco / salpicava de estrelas nosso chão”, dizem os versos revisitados com ironia machadiana pelos Mutantes em 1970.
Hoje, serão de plástico, de papelão, do que a imaginação encontra nos lixos cotidianos.
É entre ruínas e novas construções que transita o velho Machado, já viúvo de Carolina e protagonista do romance. Santiago se coloca como autor e personagem, companheiro de caminhada do famoso escritor.
As cartas que embasam a narrativa são as escritas e recebidas no período 1905-1908 (Correspondência de Machado de Assis,Tomo V, ABL).
Nascido 28 anos depois da morte do morador do chalé do Cosme Velho, 18 (que também já foi demolido), Silviano, enquanto faz ficção, tece considerações críticas à obra machadiana, desde os poemas “medíocres” de Falenas (avaliação de Santiago) até o último romance, o irretocável Memorial de Aires.
Mas não segue a ordem cronológica das publicações, convida o leitor a acompanhá-lo nas digressões, nas caminhadas pelas ruas da cidade de São Sebastião dos primeiros anos do século XX, lado a lado com o velho escritor.
Sofrendo de ataques de epilepsia que se tornam frequentes com a morte de Carolina, gago, com feridas na boca que lhe causam mau hálito, é pelo olhar, segundo Santiago de “olhos derreados, mansos e meigos de mulato carioca, nascido no morro”, que transparece o seu “afeto à humanidade, sentimento indiscriminado e superior que tapa a boca do mais atrevido e insolente dos opositores, obrigando-o, quando em presença do escritor, ao cultivo de compreensão, tolerância e respeito”.
Quem sabe esse afeto seja o motor que o leve a registrar, com “a pena da galhofa e a tinta da melancolia” de Brás Cubas, as mazelas da sociedade em que vive. Em que vivemos, pois nossas contradições, nossa violência, nossa crueldade atravessaram o século XX e chegam, intactas, aos dias deste novo século.
Detenho-me em um episódio referente à Abolição, contado no Memorial de Aires.
O Conselheiro Aires, personagem e voz narrativa do romance, comenta em seu diário a “grande novidade”: o Barão de Santa-Pia, pai da viúva Fidélia, vem à Corte consultar o irmão desembargador sobre a alforria coletiva e imediata dos escravos da fazenda Santa Pia.
Quando é questionado sobre a estranha decisão, já que era contra a abolição, diz o dono dos escravos: “Quero deixar provado que julgo o ato do governo uma espoliação, por intervir no exercício de um direito que só pertence ao proprietário, e do qual uso com perda minha, porque assim o quero e posso”.
Perda apenas aparente, pois Santa-Pia acrescenta: “Estou certo de que poucos deixarão a fazenda; a maior parte dos homens livres ficará comigo, ganhando o salário que eu lhes marcar, e alguns até sem nada – pelo gosto de morrer onde nasceram”.
O nome Santa-Pia esconde o verdadeiro autor da esperta “alforria voluntária”, o Barão de São Clemente, proprietário original da mansão onde viveu depois o Dr. Miguel Couto, clínico famoso que cuidou de Carolina e depois de Machado.
A atual demolição dos direitos trabalhistas e todos os desmandos cometidos contra a gente que trabalha me trouxe à lembrança o dito popular: “Tudo como antes, no quartel de Abrantes”.
E não é que a mansão de São Clemente ficava na rua Marquês de Abrantes?
Tenho que parar por aqui, mas há muito ainda a dizer desse romance multifacetado, que nos faz ver Machado como através das lentes de um caleidoscópio: Flaubert, também epiléptico, a amizade paternal com Mário de Alencar, filho biológico de José e sofredor dos mesmos ataques dos dois grandes escritores, as escadas suntuosas do Palácio da Liberdade em Belo Horizonte, o individualismo e a fatuidade dos novos-ricos e seus banquetes.
A propósito destes últimos, não poderia deixar de citar o artigo de Olavo Bilac (assinado como Fantasio, revista Kosmos, 1906) que termina espantosamente atual:
“São banquetes fartos, magníficos, em que se gasta dinheiro a rodo; e isso não se admira, porque neles é sempre o povo quem paga o pato...ou o peru”.