Zuleica Porto -
O Senso Comum provavelmente consideraria que “uma vida boa” seria uma vida mansa, sem problemas financeiros nem existenciais, com boa saúde, família o mais funcional possível, e, se pedisse uma ilustração, ele me traria a foto de um mar impecavelmente azul ou verde-esmeralda, pés descalços na areia, um céu limpo de um verão interminável, ou qualquer outra paisagem de uma vida em férias eternas.
O Senso Comum tem um filho, o Lugar-Comum, pródigo em gerar expressões a partir de um sistema fixo de ideias, em que um pensamento automaticamente dá lugar a outro, pré-determinado no chão batido das platitudes.
Esse sistema de pensamento e fala divertia o menino Julio Cortázar quando escutava as conversas familiares, pois “sabia antecipadamente o que iam dizer. Porque um lugar-comum puxava o outro, era um sistema já organizado de pensamentos, de política, de comida, de saúde, se o banho devia ser morno ou frio, se o bicarbonato fazia ou não fazia bem.
E eu me divertia silenciosamente adiantando para mim mesmo tudo que as pessoas iam dizer. (...) Emendavam de um lugar-comum a outro, de um juízo de valor a outro”, diz o escritor em “O fascínio das palavras”a longa entrevista que deu ao jornalista uruguaio Omar Prego pouco antes de morrer e publicada no Brasil pela José Olympio Editora em 1985, com tradução de Eric Nepomuceno.
Mas não é a descrição da vida mansa, que leva uma hipotética pessoa “boa-vida” segundo o Senso Comum, que me interessa neste momento.
A “vida boa” a que me refiro é retomada de Aristóteles pelo pensador francês Paul Ricouer, e o qualificativo tem um sentido ético. O bem dessa vida, na perspectiva ética do filósofo, “é uma vida com e para os outros em instituições justas”.
Sem o bem do outro, somos apenas de um lamentável egocentrismo e, no que apenas parece um paradoxo, nos distanciamos de nós mesmos. Pois sem o outro, como ter consciência de si? Imitando os próximos, aprendemos a falar, a andar, a comer. Escutando e observando os outros, aprendemos valores, histórias, saberes. Podemos mesmo ver a nós mesmos como um outro, ensina Ricoeur em “O si-mesmo como um outro”.
No atual momento brasileiro, sobraria lamentar a ausência das instituições justas, requeridas pelo filósofo para que possamos viver uma vida boa? Deixo aqui registrada a sua ausência, já alardeada por juristas, jornalistas, educadores e demais pensadores na enorme tribuna cotidiana aberta pela rede mundial de computadores.
Aqui mesmo, neste brasiliarios.com, muitas pessoas, entendidas em política, economia e outros saberes já falaram, com a competência que me falta, sobre o panorama desolador que atravessamos.
Mas que tal constatação não nos congele e não nos deixe sem ação. Que o pensamento único não nos paralise a intenção de viver uma vida boa, com e para os outros.
As outras. Pessoas, espécies, animais ou vegetais. Porque livre é o nosso pensamento, se não estiver acorrentado ao Senso Comum. Livre é a nossa palavra, longe do automatismo do Lugar-Comum.
Posso pensar que um rio tem mais que duas margens, como nos ensinou faz tempo o mestre Guimarães Rosa. Também livre pode ser a nossa ação, às margens do Estado, por mais autoritário que ele se mostre. Portanto, uma revolução é possível.
Uma revolução que não se realiza pela força das armas, nem mostra sua vitória pelo hasteamento de bandeiras ou o canto de hinos patrióticos, mesmo porque é uma forma de revolução silenciosa, mansa, que vai minando o “status-quo” sem que ele nem perceba...antes que seja tarde demais.
O principal arauto dessa revolução, Mathieu Riccard, escreveu sobre o assunto um extenso livro publicado no Brasil, “A revolução do altruísmo” (Palas Athena, 2015).
Nele, o autor alerta para o fato de que já estamos no Antropoceno, a Era em que o ser humano é o principal agente de impacto na Terra. Durante o 35º Congresso Geológico Internacional, realizado entre 27 de agosto e 4 de setembro na Cidade do Cabo, África do Sul, os estudiosos definiram as datas do primeiro e segundo estágio da nova era: 1800, quando da invenção das máquinas a vapor, do uso de combustíveis fósseis e da concentração de carbono na atmosfera, seria o marco do primeiro estágio; o segundo tem dia e mês precisos, o 16 de julho de 1945, quando a primeira bomba atômica foi lançada sobre a cidade de Hiroxima.
Entre suas conclusões, a de que a entrada no Antropoceno “não foi uma mudança de grau, mas de qualidade” (Carta Capital, ed. 920).
Portanto, só uma mudança na qualidade de vida, rumo a uma simplicidade voluntária, olhando compassivamente para o outro (não importa se gente, bicho ou planta) torna possível sonhar com a permanência da espécie no Planeta.
E é neste ponto que o pensamento de Mathieu Riccard, que além de monge budista é também cientista (PhD em genética molecular pelo Instituto Pasteur), encontra o do filósofo Paul Ricoeur.
Diz o monge: “Ao ter mais consideração pelos outros, teremos uma economia solidária, em que as finanças estejam a serviço da sociedade e não a sociedade a serviço das finanças. Se vocês têm mais consideração pelos outros, se assegurarão de remediar a desigualdade, de trazer algum tipo de bem-estar para a sociedade, para a educação e o local de trabalho. Do contrário, se a nação for poderosa e rica, mas todos são pobres, qual o sentido? E se temos consideração pelos outros, não prejudicaremos o planeta que temos; e no ritmo atual não temos três planetas para continuar dessa maneira”.
Não podemos nos acomodar ou nos conformar com os desmandos que aí estão, pensar que tudo está perdido. É urgente e necessária a ação, das diversas maneiras possíveis.
Manifestar-se nas ruas e praças, escrever, debater ideias nas salas de aula, nos bares, nas festas, tudo são ações que nos tiram desse atoleiro nacional e global.
E uma delas é, acredito, ir minando, com pequenas atitudes diárias, todo o sistema que aposta no consumo desenfreado, no individualismo cego, na competição por mais dinheiro ou mais poder.
Quem sabe um dia possamos, finalmente, viver a vida boa, com e para os outros, com as instituições justas que merecemos, em um país e em um planeta onde realmente a alegria seja, como dizia Oswald, “a prova dos nove”.