Zuleica Porto -
Visão monocular e distração congênita me fizeram pedestre – quem anda ou está a pé, segundo o dicionário. Quando ainda era adolescente, sofri um atropelamento sem gravidade e torci o pé ao descer do ônibus, o que me levou a um certo receio por automóveis, ônibus e caminhões, esteja dentro ou fora deles. Porque são feitos de matéria demasiado dura para nossa frágil constituição de carne e ossos.
Longe de mim, no entanto, considerá-los meus inimigos. Aceito com gratidão caronas de parentes e amizades motorizadas quando a distância é longa, o sol abrasador ou a noite avançada.
Até já comprei um automóvel, mas o verdadeiro dono foi meu filho, dos dezoito anos até a graduação, quando se mudou para outro continente e vendemos o carrinho branco, que tinha um amigável adesivo do Darth Vader.
Quando exercia a função de bancária, ia de ônibus para o trabalho. E coleguinhas motoristas questionavam como conseguia “sobreviver” nesta cidade feita para automóveis.
Uma delas, cheia de boa vontade, chegou até a me inscrever numa autoescola. Agradeci e recusei. E todos os dias atravessava o cerrado, da L-2 Sul até a beira do Lago Paranoá, pois era no Setor de Clubes Sul o meu aprazível local de trabalho.
Além de pedestre, sou também andarilha – segundo o dicionário, a que caminha muito. E gosto. Caminhar vicia. Já me explicaram que o ato libera endorfinas. Que sejam bem-vindas, as endorfinas.
E como João do Rio (RJ, 1881-1929), “eu amo a rua”. João tinha um nome longo como se fosse um rebento da realeza – João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto. Hoje tem uma rua, a Paulo Barreto, em Botafogo.
A homenagem, diz Graciliano Ramos, “é modesta: ofereceram-lhe uma rua curta”. Logo para quem tanto amava a rua! Este andarilho, cronista do Rio que incorporou a cidade em seu nome, escreveu, entre outros, um livro chamado “A alma encantadora das ruas”.
Logo na primeira página, João oferece ao leitor a fria definição do dicionário para a palavra “rua –do latim ruga, sulco. Espaço entre as casas e povoações, por onde se anda e passeia”.
Acrescenta que consultou vários deles, além de vinte enciclopédias e não encontrou a informação que buscava: a rua tem alma. “Em Benares ou em Amsterdão (sic), em Londres ou Buenos Aires, sob os céus mais diversos, nos mais variados climas”, João do Rio diz que a alma da rua é generosa, oferece “luz, bem-estar, comodidade, o adejar das árvores e o trinar dos pássaros”.
Esse João do Rio poderia ser o “João de Brasília” se a ela chegasse numa máquina do tempo, porque por aqui temos muitas árvores e pássaros que certamente lhe agradariam.
É bem verdade que no Plano Piloto de Lúcio Costa não existem propriamente “ruas” e nossos endereços espantam os visitantes. O urbanista definiu que “quanto à numeração urbana, a referência deve ser o eixo monumental, distribuindo-se a cidade em NORTE e SUL, as quadras assinaladas por números, os blocos residenciais por letras”.
E assim, nas duas Asas, vivemos nas SQNs ou SQS, que o brasiliense legítimo já considera a forma mais lógica e fácil de localização. Mas o amor da rua permanece, e algumas quadras comerciais ganharam apelidos pelos quais são conhecidas, como a Rua da Igrejinha, a Rua das Farmácias, a Rua das Elétricas, a Rua das Noivas. E uma, por sua arquitetura peculiar, não é rua nem quadra, é a Babilônia.
Embora sejam escassas e precárias as calçadas, e frequentemente interrompidas pelos caminhos asfaltados, domínios dos automóveis, as “ruas” brasilienses são fartas de árvores que oferecem sombra, frutas e flores para os passantes, os insetos e as aves, grandes e pequenas.
Uma amiga que entende muito desses seres ensinou que todo passarinho é ave, mas nem toda ave é pássaro. Dos pequeninos beija-flores às grandes curicacas, temos também sabiás, bem-te-vis, quero-queros.
E as tesourinhas, que acabaram batizando trechos viários e um bloco de carnaval. Sem falar nas corujas, as “buraqueiras” que nos encaram carrancudas. Outro dia, encontrei um gavião, serenamente passeando na calçada esburacada.
A vegetação densa foi vindicada por Lúcio: “as grandes quadras (...) emolduradas por uma larga cinta densamente arborizada, árvores de porte, (...) com chão gramado, arbustos e folhagens”.
Frondosas, elas hoje batizam as estações: temos o tempo das sibipirunas e cambuís, que é o mesmo da safra das mangas; o dos flamboyants; o das quaresmeiras, e o tempo dos ipês gloriosos, quando o inverno seco e frio se enfeita de rosa, de amarelo, de branco e o chão se cobre da neve tropical que são os flocos despejados pelas paineiras.
Os gramados bifurcam-se em caminhos que batizamos “de rato”, e que lembram os das pequenas aldeias interioranas e podem dar no cerrado que nos cerca, lamentavelmente cada vez menos.
Fazem falta, nas ruas de Brasília, bancos para caminhantes sentarem e fontes que lhes matem a sede. Pois são longos os trajetos na cidade espalhada.
Esses singelos equipamentos urbanos, certamente menos custosos que os viadutos que nunca faltam para os automóveis, tornariam mais aprazíveis as caminhadas, sejam elas por gosto ou rumo ao trabalho, à escola, ao mercado.
E certamente incentivaria a prática do esporte que o João do Rio considera também uma arte – a de flanar. Em que consiste? Esclarece o cronista que é “ser vagabundo e refletir, é ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem”, enfim, sair por aí sem fazer nada, levado por um som que atrai, uma imagem que intriga, um perfil que seduz. “Perambular com inteligência”, resume.
Pois com João concorda o urbanista de Brasília, que quis “oferecer aos moradores extensas áreas sombreadas, para passeio ou lazer”, de forma que a cidade fosse “cidade parque, íntima, lírica e bucólica”.
É inútil, a criatura que flana? À primeira vista, sim, como equivocadamente são consideradas inúteis as artes nesses duros tempos mercantilistas. Mas seríamos quase máquinas se não tivéssemos artistas, não é mesmo?
Embora nossa arte seja bem humilde, nós temos nossa modesta utilidade, acreditem. Damos informações a pessoas perdidas, por exemplo.
Trabalhadoras em busca da casa da patroa, doentes procurando o hospital, costureiras que querem saber onde fica o armarinho mais próximo. Mesmo os motoristas visitantes que se perdem nas “tesourinhas” e entrequadras param seus carros para nos perguntar onde é tal endereço.
Sabemos onde fica tudo, porque passamos pertinho. Até sabemos onde é a oficina que fica debaixo da goiabeira. Eu sei, mas não conto aqui não. Só se alguém passar por mim e perguntar.
Outra utilidade é a de não ocuparmos quase espaço. Só o do nosso próprio corpo. Portanto, não engarrafamos o trânsito. Não ocupamos vagas de estacionamentos. E quase não poluímos o ar, o gás carbônico que expelimos é só mesmo o da expiração.
Então, merecemos mais cuidado por parte de quem administra a cidade, não merecemos?