"A vida é de quem se atreve a viver".


Litoral do Ceará (foto: Zuleica Porto)
Na gentil terra dos ventos

Zuleica Porto -

Estado de encantamento. Aqui é uma surpresa alegre abrir a janela todas as manhãs. Tenho até medo diante de tanta beleza: o mar, o mato, os bichos, o céu, o sol, o mar...

E as pessoas que vivem aqui, uma gente morena, baixinha e muito bonita.

De que nação será que descendem? Potiguares, fico imaginando, pois viviam aqui nesse litoral quando chegaram os invasores. Mas dessas coisas de origem e etnia nem se dão conta, apenas vão vivendo a vida de cada dia, querem saber mesmo é se o mar traz o peixe e se as nuvens trazem a chuva, tão rara e necessária, se a lavoura de milho e feijão é boa.

Talvez devido ao vento constante, homem, mulher ou criança, todo mundo fala alto e agudo. E também ri muito, inclusive e principalmente de si.

Pescadores que, durante a semana, seguem mar adentro nas jangadas tão frágeis, aos domingos, quando a maré é vazante, comparecem à praia com suas jangadinhas de corrida, pequeninas e de velas bem grandes e coloridas, dando altas risadas durante as competições. Assim transformam em brincadeira o que durante a semana é trabalho.

Nunca vi uma volta do trabalho tão bonita quanto a chegada das jangadas no começo da manhã: chegam praticamente todas juntas, seis, sete, como se tivessem combinado, graças aos ventos e marés.

A volta para casa é a volta para a terra firme, depois de uma noite em alto mar, que imagino belíssima, mas perigosa e fria. E imagino que, feito Ulisses, esses homens se amarrem às jangadas para não cair com o movimento das ondas e o canto do vento, a sereia dessas praias.

O trabalho é perigoso e incerto, a jangada pode voltar cheia de pescado ou não, e, como na canção de Caymmi, pode “voltar só”.

Será a consciência da fragilidade da vida que torna essa gente portadora de uma gentileza tão assombrosa quanto a intensidade do vento?

Quando alguém morre, toda a população acompanha o cortejo, a pé, de moto, bicicleta, carro ou carroça, até o cemitério da aldeia vizinha. É dia de luto partilhado, assim como a alegria domingueira.

Gentileza sem pose de “olha como sou gentil”, ela se mostra nos pequenos gestos, atitudes e palavras cotidianas. “Cuidado quando descer, venha por aqui que é melhor”. Se falta dinheiro para completar a compra, “tem nada não, depois a senhora traz o resto. Quando puder, tem pressa não”.

Um dia, caminhando pela praia, esqueci as havaianas numa jangada. Nem tinha me dado conta do esquecimento quando me aparece um rapaz, que me seguira correndo por uns dois quilômetros para me entregar as sandálias. Fiquei pasma.

Dão o que têm de melhor. Um peixe, um doce, uma cachaça. Dão histórias também, e graças a sua generosidade em partilhar suas histórias foi que escrevi uma tese sobre a literatura oral cearense.

Alguns desses narradores, já velhinhos na ocasião, partiram para outras praias. Outros continuam por aqui, ouvindo e contando histórias de vento, de pescadores, de bichos encantados, de “Jesus mais São Pedro velhinhos andando pelo mundo”, de jangadas que voam sozinhas contra o vento...

É o caso do Sr. Lauro, que me deu de presente o belíssimo e caudaloso “Romance de Guzmán e Cadadal”, transmitido oralmente através de muitas gerações e agora registrado em papel, com sua devida autoria, para a memória de nossa literatura mais antiga. Encontro Sr. Lauro ainda em pleno vigor, lucidez e entusiasmo pela vida.

De noite o vento tem nome. É o Aracati, que chega até o sertão e empresta seu nome à cidade vizinha, que no passado foi São José do Porto dos Barcos, importante entreposto comercial e grande produtora de carne seca, graças à fartura de vento e de sal.

Na foz do Jaguaribe, a cidade até hoje mantém a tradição de terra de comerciantes, tão bons na arte de vender que a gente compra até sem querer.

Tão próximas uma da outra, a aldeia e a cidade são diferentes no tipo físico – enquanto a primeira é morena, nos casarões aracatienses revestidos de azulejos portugueses mora uma gente branca, às vezes muito branca, de lábios vermelhos e cabelos pretos.

Parecem os habitantes do Norte de Portugal e Noroeste da Espanha, e talvez dali tenham vindo seus antepassados, provavelmente pequenos agricultores, comerciantes ou marinheiros. Diferenças à parte, a gentileza permanece, talvez seja contagiosa, levada pelo vento.

Já nas praias do município de Icapuí, quase Rio Grande do Norte, o povo é louro de olhos verdes. Reza a lenda local que seriam descendentes dos holandeses que viveram por aqui antes de serem expulsos pelos portugueses.

Não sei, pode ser. Ou de franceses, que também andaram comerciando com os nativos?

Tudo são suposições, porque este pedaço de Brasil foi por muito tempo esquecido pela Corte portuguesa, ocupada com as explorações do ouro das Minas e com os negócios de açúcar de Pernambuco e Bahia.

Afinal, aqui nada havia para atiçar a cobiça do colonizador; Capistrano de Abreu data de 1610 as primeiras tentativas de ocupação. Os brasileiros daqui seguiram esquecidos pelos séculos seguintes, vivendo do mar, da pequena lavoura em terra de água pouca, recorrendo ao poder curativo das plantas quando adoecem, ou mesmo às palavras poderosas das rezadeiras que ainda existem por aqui.

Pois os médicos sempre estiveram distantes e inacessíveis, salvo nos momentos graves quando o doente era levado “nas carreiras” para o hospital, às vezes só para ali deixar o último suspiro.
Durante os últimos anos, uma mudança começou. A Escola, antes com instalações precárias e professoras que mal recebiam salário e compareciam ao trabalho dia sim, outro não, sem merenda para as crianças, agora está bonitinha, com parque infantil, sala de informática e outra para as crianças que necessitam de cuidados especiais.

Além da merenda, ganham uniforme e material escolar.Tudo isso me mostrou com orgulho o Coordenador pedagógico. Também apareceram os famosos ônibus amarelos para quem estuda na cidade. De tarde, o projeto Mais Educação oferecia aulas de música, pintura, teatro.

E o lugar agora tem Posto de Saúde, com médico toda semana.

O que permanecerá de tudo isso? A depender dos homens brancos e velhos e tristes que atualmente governam o Brasil, talvez pouco, talvez nada.

Mas essa gente morena, acostumada a contar só consigo mesma, com os santos de sua intimidade e com o que lhe dá o mar e a terra, seguirá por aqui, com suas risadas gostosas, sua generosidade, sua gentileza e a sabedoria que a vida ensina.

Afinal, são mestres na arte de sobreviver nas mais duras condições, a resistência já está gravada no DNA desde o tempo das invasões e dos primeiros extermínios. Porque cabem muitos brasis neste Brasil desgovernado.

Este é apenas um deles. Mas estar aqui alimenta a alma de beleza e gratidão por ele existir ainda.

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