Marcos Bagno –
Ninguém se iluda. O primeiro turno da vitória da direita extremada se deu no dia 14 de março deste ano, quando a vereadora Marielle Franco, do PSol, foi assassinada a tiros junto com o motorista Anderson Gomes. As urnas do dia 28 de outubro, portanto, simplesmente chancelaram uma vitória anunciada meses antes.
Marielle Franco é a corporificação trágica de tudo aquilo que tem alimentado o ódio de classe constitutivo da sociedade brasileira: mulher, negra, bissexual, nascida e crescida na favela, ativista política de esquerda.
A escolha do alvo não foi indiferente: foi uma decisão calculada, planejada e executada (em todos os sentidos do verbo “executar”). Foi uma mensagem de obscena explicitude: cada pessoa que compartilhe com Marielle pelo menos uma de suas características individuais e/ou sociais é desde aquele dia uma vítima potencial da violência, antes difusa, agora propalada como futura política de Estado. Uma mensagem dirigida a nada menos do que três quartos da população. Uma mensagem, sim, mas nunca uma promessa: promessas se cumprem ou não, mas essa possibilidade de não cumprimento está descartada.
Os diversos casos de assassinato e agressões físicas cometidos em nome do candidato desde então, as invasões truculentas de universidades às vésperas da segunda votação, as intimidações dirigidas às mais altas instituições republicanas deixam isso evidente.
Um ódio de classe – até recentemente enrustido sob a capa da hipocrisia – que finalmente pôde se expressar sem temor e sem tremor, amparado na discurseira de um personagem incapaz de articular três frases com o mínimo de coesão e coerência. Trata-se de um grande desafio para as ciências médica e linguística: muitos estudos têm demonstrado, há quase um século, que as pessoas mais gravemente afetadas por algum tipo de transtorno psíquico exibem um desempenho linguístico de extrema racionalidade, de perfeita utilização dos recursos morfossintáticos de seu idioma, de inteligência discursiva impressionante. No caso em pauta, nada disso se verifica.
O projeto de combate à vida civilizada voltou a anunciar sua vitória iminente no dia 2 de setembro, com o incêndio do Museu Nacional no Rio de Janeiro. O fogo que consumiu a mais importante instituição de pesquisa do país, junto com um acervo cuja perda representa uma calamidade para a espécie humana, prenunciava a perseguição – mais uma vez, bem planejada, sistemática – desencadeada contra qualquer forma de inteligência, de valorização da cultura, da ciência e das artes. Querer reduzir a cinzas a educação escorada na pluralidade de modelos de pensamento, rasgar livros sobre direitos humanos em bibliotecas universitárias, incentivar a espionagem e delação da prática docente, repudiar as ciências humanas e sociais – tudo isso será o prosseguimento “natural” da demolição do saber representada pelo incêndio do Museu Nacional.
A absoluta indiferença exibida pelo então candidato diante da tragédia revela, como se fosse preciso, o que ele pensa (ele pensa?) da arte, da cultura, da ciência, da civilização enfim. A repulsa às ciências humanas e sociais é uma repulsa à própria ideia de humanidade e de sociedade.
Mas talvez seja possível recuar ainda mais a vitória desse projeto de terra arrasada. Nesse caso, ela teria principiado em 2016, quando um parlamento (indigno de inicial maiúscula) dominado pelo que há de mais sórdido no espectro social brasileiro, coligado com um judiciário (igualmente minúsculo) omisso e acovardado (senão francamente partidarizado) e à Grande Mídia (esta, sim, maiúscula em sua indecência) conspiraram para depor uma presidenta democraticamente eleita, num golpe em que a misoginia não teve papel menos importante do que as falsas acusações de improbidade administrativa.
O regime que se anuncia será a versão paroxística do governo mais grotesco da história do Brasil, e um dos mais vexaminosos do mundo, liderado por um fantoche, ele sim, acusado de práticas corruptas sabidas e consabidas, ladeado pelo que pode haver de mais execrável e pusilânime na classe política brasileira.
Mas nem todo o mal que se anuncia pode ser imputado apenas ao projeto fascistoide vitorioso nas urnas, com o uso criminoso das ferramentas digitais e o apoio de um empresariado anticapitalista.
As causas mais distantes e profundas do descalabro que escurece o horizonte e sufoca qualquer expectativa de paz e civilidade a curto prazo podem estar na coleção de erros acumulados por um partido que permaneceu treze anos no poder e que, renunciando aos princípios ideológicos estabelecidos em sua formação, firmou as mais indignas alianças e conciliações, não promoveu a regulação dos meios de comunicação, não submeteu a nenhum tipo de taxação fiscal as fortunas construídas sobre a miséria da maioria da população, não impôs nenhuma restrição à indústria religiosa, talvez a mais lucrativa do país, e, principalmente, que não cuidou de criar uma conscientização política na sociedade, que não radicalizou a democracia, que não só não passou a limpo a ditadura como se aliou a alguns de seus piores resquícios e excrescências. Um partido que trocou um projeto de nação por um projeto de poder, que se afastou pouco a pouco da esquerda para se transformar num centro em forma de grande bolha proteiforme e sem identidade, colonizada por uma miríade de interesses escusos, admitidos sob a justificativa de uma governabilidade que, tudo está aí para demonstrar, de fato nunca existiu. Que recorreu, nos momentos mais críticos, a estratégias que se revelaram extratrágicas até os últimos estertores da campanha.
De todo modo, a vitória rematada dia 28 traz em si suas próprias contradições, suas impossibilidades intrínsecas, já se mostra como um inevitável fracasso porque, desprovido dos requisitos mínimos (inclusive mentais) exigidos de um estadista e carente sequer de um verniz de sagacidade, o eleito não será capaz de resistir às rasteiras de seus próprios aliados, se é que podem ser chamados assim os abutres de última hora que resolveram acompanhá-lo para tirar algum proveito.
O atual espanto da comunidade internacional civilizada se tornará escândalo planetário e vergonha nossa quando se iniciarem as relações entre o inevitável desgoverno e o resto do mundo.
O que está por vir é um caos institucional, uma aberração política, um ingente autoritarismo, um Estado policialesco como nas piores ditaduras.
Temos pela frente a imensa e dificílima tarefa de reconstituir a trama social esgarçada, de juntar os cacos da democracia e tentar reconstituí-la com a cola forte do ativismo incessante e da resistência irredutível.
As instituições republicanas estão corroídas por dentro e por fora, basta um leve sopro para que desmoronem, e o que se anuncia não é um leve sopro, mas um ciclone. É nas ruas, nas trincheiras da produção do saber, nas salas de aula, nos movimentos sociais, na luta sindical não partidarizada, no trabalho ininterrupto de militância contra toda forma de violência e de ódio, no cultivo da arte e da cultura, na exposição sem medo de todas as formas de amar, no reconhecimento sem ambiguidades do protagonismo feminino, no resgate do diálogo intenso e extenso com a população mais vulnerável que poderemos enfrentar e, tomara, derrotar a ignomínia que promete se instalar no Brasil a partir de 1º de janeiro.
A covardia não deve nos assombrar. A covardia é a marca registrada do fascismo. E o fascismo sempre foi o grande derrotado da História.