"A vida é de quem se atreve a viver".


Esse texto foi apresentado por Marcos Bagno (foto) na XXVII Jornada do Gelne – Grupo de Estudos Linguísticos e Literários do Nordeste, Recife, 15/11/2018.
Qual política linguística para o Brasil?

Marcos Bagno (*) –

A definição já clássica de política linguística é a de qualquer intervenção explícita do Estado na dinâmica social da língua ou das línguas faladas no território em que esse Estado exerce seu domínio. O estabelecimento de uma língua oficial ou de mais de uma língua oficial, por exemplo, é uma política linguística explícita, assim como proibir o uso de determinada língua também é. Instituir qual será a língua da administração pública, dos meios de comunicação e principalmente do ensino formal também é uma política linguística.

Mas nem toda política linguística é explícita. Existem também políticas linguísticas implícitas, quase sempre resultantes de uma ausência de intervenção do Estado na dinâmica social das línguas. Mas a ausência de política linguística também é uma política linguística. Quando o Estado deixa de atuar em determinado campo da vida social, essa ausência é uma política, é uma intervenção ao contrário, um abandono desse campo da vida social.

O Estado brasileiro tem se caracterizado desde sempre pelo abandono sistemático de amplos setores da vida social, num projeto deliberado de manter na pobreza, na indigência e mesmo na miséria mais abjeta a maioria da população. Maioria da população que, como se sabe, é essencialmente não-branca. O Estado brasileiro, salvo raras ocasiões, e ocasiões fugazes, representa os interesses de uma minoria: a minoria branca urbana de classe média e alta, com ênfase no setor masculino dessa minoria. Sempre foi assim. E tudo indica que essa configuração do Estado brasileiro vai se radicalizar plenamente a partir do próximo ano, quando terá início um governo que já se anuncia como uma aberração política e, mais do que isso, como uma aberração social, uma vez que será comandado por homens brancos que assumem sem rodeio uma ideologia racista, sexista, homofóbica, defensora de um autoritarismo homicida, uma ideologia que pode se transformar em política de governo, uma política que se apoia em dois pilares que são o contrário perfeito de toda forma de civilização: o ódio e a violência.

O ódio, mais especialmente o ódio de classe, ao lado da violência social têm sido a marca registrada, a espinha dorsal da formação da sociedade brasileira. E não poderia ser de outro modo num país em que a escravidão imperou por quase 350 anos e em que o genocídio planejado das populações indígenas foi um êxito quase total. Digo quase total porque ainda sobrevivem alguns grupos indígenas, que no entanto são alvo de ataques contínuos de interesses que até pouco tempo atrás estavam dispersos localmente, mas que a partir de agora serão abrigados pelas instituições mais altas da república.

Os dados da violência no Brasil são estarrecedores. No Brasil, uma mulher é assassinada a cada hora e meia. O Brasil é considerado o 5º pior país para se nascer mulher. No Brasil, um jovem negro é assassinado a cada 23 minutos. O Brasil é campeão mundial de assassinatos de lésbicas, gays e transexuais. O Brasil está entre os dez países com a pior distribuição de renda do mundo. No Brasil, 6 homens brancos detêm juntos uma riqueza que equivale à de cem milhões de trabalhadores. No Brasil, em 2017, ocorreram mais de 60.000 assassinatos com arma de fogo, mais do que o número de soldados estadunidenses mortos na guerra do Vietnã, que durou 20 anos. No Brasil, 75% da população entre 15 e 64 anos é analfabeta funcional.

O ódio e a violência, portanto, sempre caracterizaram a vida social brasileira. Agora, ao que tudo indica, o ódio e a violência vão se tornar política de Estado, projeto de governo. Um candidato a presidente que transformou em símbolo de sua campanha o gesto dos dedos em forma de revólver, e que venceu as eleições a bordo dessa monstruosidade, não terá nenhum obstáculo moral em implementar uma política de violência explícita e sem controle. Um político medíocre, que foi durante muito tempo uma figura caricata, vem catalisando todo o ódio latente naquela parcela da sociedade que não tolera nada que seja diferente dela mesma.

Mulheres, mulheres negras, homens negros, homossexuais, pobres, nordestinas e nordestinos, indígenas – juntas e juntos, constituem a maioria da população brasileira. Como será possível governar um país desprezando, humilhando e deixando morrer a maioria da população? Que sociedade doente é esta que elege seu próprio carrasco? Que aplaude quem diz que vai acabar com todos os direitos trabalhistas, que vai desmatar toda a floresta amazônica, que tem como ídolo o mais sanguinário dos torturadores?

Qual será a política linguística desses tempos sombrios que se anunciam? Ao que tudo indica, será a política do silenciamento, do silenciamento pela intimidação, pela ameaça. Não só pela ameaça em si, mas pelo cumprimento das ameaças, como temos visto nos últimos meses.

A política linguística que se sustenta no ódio e na violência está sendo costurada num ritmo veloz. Os ataques à liberdade de expressão, a proibição explícita da presença de jornalistas nacionais e estrangeiros em eventos de interesse público, o elogio e o orgulho da ignorância, da truculência e do desprezo do conhecimento – tudo isso já pode ser considerado como uma política linguística, não explicitada como tal, mas uma política linguística implícita.

No que diz respeito a nós, profissionais da educação, essa política linguística sustentada no ódio e na violência corre o risco de se tornar lei. A perseguição covarde à profissão docente, até agora dispersa e praticada por indivíduos isolados, pode vir a se tornar, mais uma vez, política de governo. A autorização formal para que estudantes filmem e gravem as aulas de professores acusados de praticar “doutrinação” em sala de aula é uma política linguística. Uma política linguística contra a linguagem, pura e simplesmente, contra a atividade primordial e primeira da espécie humana, que é o discurso, o exercício da capacidade de falar. Não querem que a gente fale. Porque também não querem que a gente pense. Querem que a gente se transforme em meras repetidoras e repetidores de um conjunto restrito de ideias imbecis, desprovidas da fundamentação mais básica, enunciadas na forma de palavras de ordem, de argumentação rasa, frases feitas e carentes do mínimo de coesão e coerência.

Um país que criminaliza a educação é um país que privilegia a ignorância.

Como é possível construir uma nação sem professoras e professores?

Eu, como profissional da linguagem, me recuso terminantemente a me sujeitar a essa política linguística do ódio e da violência.

Não vou me deixar intimidar por gente que demonstra uma evidente falta de inteligência até mesmo para expor suas ideias, que não são ideias, são vômito discursivo. Eu passei a infância e a juventude debaixo de um regime ditatorial torturador e assassino.

Aprendi, com meus pais, as formas de resistência e não vou abrir mão delas só porque um grupo de medíocres desequilibrados arrotam suas ameaças contra mim pessoalmente, contra a minha profissão e contra a maioria da população.

E uma dessas formas de resistência é exatamente o que estamos fazendo aqui: utilizar todo momento de fala pública para denunciar o ódio e a violência, para dizer que não aceitamos nenhuma forma de intimidação nem de censura. Falar é resistir. E não podemos de modo nenhum desistir de falar.

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(*) Texto apresentado por Marcos Bagno na XXVII Jornada do Gelne – Grupo de Estudos Linguísticos e Literários do Nordeste, Recife, 15/11/2018.

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