"A vida é de quem se atreve a viver".


Bagno: "Na 56ª edição de meu livro sobre o preconceito linguístico, constato que o Brasil é um país triste. E cada dia mais perigoso e violento".
"Preconceito linguístico", 18 anos depois

Marcos Bagno (*)

Há poucos dias recebi meus exemplares da nova edição do livrinho Preconceito linguístico, a 56a. Enquanto abria o pacote, fiz uma conta rápida e me dei conta de que o livro foi publicado há 18 anos, em fevereiro de 1999.

Desde então, já publiquei muitos outros livros, inclusive uma gramática de mais de mil páginas, mas esse permanece como o mais lido, o mais comentado, o mais adotado em universidades Brasil afora.

Quase todo dia recebo alguma mensagem de pessoas que estão lendo a obra e querem dar seu depoimento sobre o impacto que a leitura lhes provocou.

O aniversário me levou a algumas reflexões.

Quando eu e meu querido amigo-xará-editor Marcos Marcionilo publicamos Preconceito linguístico, nem de longe eu poderia imaginar que a pequena obra teria tanta divulgação (ele provavelmente sim, como editor perspicaz que sempre foi!).

A primeira edição se esgotou muito depressa e, desde então, as tiragens vêm se sucedendo, quase uma por semestre. Em 2015, a obra se mudou para sua nova editora, a Parábola, e aproveitei a mudança para fazer uma atualização do texto e, principalmente, para incluir material novo, o que fez o livro ficar bem mais gordinho, quase com o triplo de páginas que tinha antes.

A capa das edições anteriores, com uma fotografia que mereceu muitos comentários de leitoras e leitores que se identificavam com as pessoas retratadas, não pôde ser mantida, mas ainda assim fizemos questão de escolher uma nova imagem que continuasse a exibir as profundas desigualdades sociais do Brasil, desigualdades que são a fonte dos preconceitos.

Publicado em 1999, o livro surgiu nos últimos anos do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, um governo histericamente neoliberal, marcado por uma ânsia de privatizar todo o patrimônio do povo brasileiro e entregá-lo de bandeja aos interesses mais escusos e obscuros.

A corrupção praticada nesse processo, não por acaso apelidado de “privataria”, permanece até hoje impune, blindada pela mídia oligárquica e reacionária, que só vê corrupção no quintal alheio, nunca no seu próprio.

Nem a revelação da existência de várias empresas no Panamá em nome do privateiro-mor e família abalou essa impunidade.

Dos dezoito anos do Preconceito linguístico, a maior parte coincidiu com a implantação de um projeto reformista, conduzido pelo ex-presidente Lula, que lançou o foco, pela primeira vez, sobre a maioria mais pobre da população, fazendo ao mesmo tempo grandes concessões à parcela mais rica, numa tentativa de conciliar interesses que, bem sabemos, são inconciliáveis porque nossa estrutura social, marcada pela extrema desigualdade e por uma profunda exclusão, precisa dessa desigualdade e dessa exclusão para existir como sempre tem existido.

De todo modo, ocorreram importantes avanços sociais no período.

No entanto, como já escrevi num poema, o flautista se deixou iludir por sua própria música: ela não durou tempo bastante para que os ratos fossem definitivamente expulsos, até porque os mesmos ratos ajudaram a compor a melodia.

O pacto feito com alguns dos setores mais corrompidos da nossa sociedade não foi suficiente: os senhores feudais de sempre se cansaram da brincadeira e construíram sua rede de intrigas e mentiras para recuperar as rédeas do poder.

Utilizando métodos próprios das organizações criminosas, os escravocratas de quatro costados deram o golpe, destituíram a presidenta eleita, vomitaram sobre a Constituição de 1988 e agora se empenham em destruir o mais depressa possível o frágil sistema de proteção social construído nos governos Lula e Dilma.

O assalto ao poder maior tem sido acompanhado, em escala microssocial, por uma explicitação nunca antes tão escancarada daquilo que constitui a espinha dorsal das relações sociais no Brasil: o ódio de classe.

Durante longuíssimo tempo, esse ódio de classe se escondeu por trás de mitos zelosamente construídos para disfarçá-lo: o mito da “democracia racial”, do “caráter generoso” dos brasileiros, do “convívio harmonioso” das classes sociais, da “tolerância natural” da nossa gente etc.

Agora, no entanto, com o fascismo plenamente instalado nos três poderes e assumido sem rodeios pela grande mídia, ninguém mais se importa em se ocultar por trás daqueles mitos.

Essa gente que saiu e sai às ruas em defesa de ideias próprias da direita mais retrógrada já não tem escrúpulos em exibir seu ódio de classe, em pedir com todas as letras a morte desta ou daquela pessoa, em dar apoio a criminosos notórios, em expor seu racismo visceral, em pedir a volta da ditadura, em clamar contra as conquistas dos movimentos feministas etc.

As classes dominantes odeiam ver filhas e filhos de pessoas pobres “invadindo” as universidades públicas, até há pouco tempo espaço reservado à prole dos “bem nascidos”.

Elas odeiam ter de dividir os aeroportos e aviões com suas empregadas domésticas, com seus porteiros, suas faxineiras, com essa gente pobre, preta e mestiça que deixa os aeroportos parecidos com “rodoviárias”.

Elas odeiam ter de cumprir os direitos trabalhistas das domésticas, que sempre foram tratadas como quase escravas (e, em certas regiões, como escravas de fato).

Elas odeiam (e mandam matar) os milhões de camponesas e camponeses sem terras que lutam por seus direitos ao trabalho digno e se organizam em movimentos sociais reivindicatórios.

Por tudo isso é que recebo meus exemplares da nova edição de Preconceito linguístico com um misto de alegria e tristeza.

Alegria por saber que a obra ainda tem o que dizer às pessoas que lutam por uma sociedade mais justa e menos violenta.

E tristeza pela mesma razão: como seria bom se todas as situações descritas no livro já pertencessem ao passado!

Desgraçadamente, elas pertencem ao nosso cotidiano mais concreto.

Não bastassem os preconceitos e as discriminações seculares que caracterizam a sociedade brasileira, agora ainda temos que enfrentar novas categorias de violência simbólica, novas perseguições a toda e qualquer forma de democratização das relações sociais.

O Brasil é um país triste. E cada dia mais perigoso e violento.


(*) Marcos Bagno é professor do Instituto de Letras da Universidade de Brasília (UnB). Escritor, poeta e tradutor, já publicou mais de 30 livros, entre obras técnico-didáticas e literatura. Autor de Gramática Pedagógica do Português Brasileiro - Parábola Editorial, 2012 - www.parabolaeditorial.com.br

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