Marcos Bagno -
Dizer se um modo de falar é uma “língua” ou não, se é uma “variedade” ou um “dialeto” de uma “língua”, taí uma coisa que escapa completamente das mãos dos linguistas, filólogos, gramáticos etc.
É uma decisão eminentemente política e, portanto, ideológica. Os especialistas podem esbravejar, levantar as mãos para os céus, se atirar do décimo terceiro andar: não adianta nada.
É isso que explica as diversas situações curiosas que existem no mundo. De um lado, temos modos de falar idênticos que, por razões político-ideológicas, recebem nomes diferentes. É o caso clássico da língua que, para os linguistas, sempre se chamou “servo-croata”, mas que, depois do esfacelamento da antiga Iugoslávia, hoje recebe nada menos do que quatro nomes diferentes: “sérvio”, “croata”, “bósnio” e “montenegrino”.
A mesma coisa acontece com a língua mais falada no Paquistão, o “urdu”, e aquela que, na Índia, recebe o nome de “híndi”.
Por desavenças religiosas profundas entre os dois países, desavenças que já provocaram guerras terríveis, o “urdu” e o “híndi” são oficialmente tidos como “línguas” diferentes, muito embora os linguistas prefiram se referir a um “hindustâni”, mas quem são os linguistas para preferir o que quer que seja?
Do outro lado, temos modos de falar muito diferentes uns dos outros e que, de novo, por razões políticas, culturais, religiosas etc. recebem um nome só.
É o caso do “árabe”. Em cada país “árabe”, a língua realmente falada pela população é muito diferente da do país vizinho. Um marroquino que viaja à Arábia Saudita vai ter a mesma dificuldade de um brasileiro que viaja à Itália: tem coisa parecida, sim, mas as diferenças são muito maiores.
Por causa da reverência prestada à língua em que foi escrito o Corão, e que se chama comumente de “árabe clássico”, as outras variedades são chamadas de “dialetos” e não recebem atenção institucional.
O que se ensina nas escolas é somente o “árabe clássico” e sua versão mais moderna, um padrão que serve de instrumento de unificação cultural entre os diferentes países “árabes”.
Por isso é que dizer se a língua majoritária da população do nosso país é “brasileiro” ou “português” já fez correr muita tinta, mas essa discussão é, no fundo, um tanto vã.
Só uma decisão vinda de cima poderá resolver a pendenga. Enquanto isso, nós, pesquisadores, temos mais é que prosseguir em nossas investigações e conhecer cada vez melhor essa língua que, hoje em dia, nos meios científicos, recebe o nome de “português brasileiro” — o que, cá entre nós, já é uma vitória e tanto para os que defendem as especificidades da nossa língua.
O fato é que, do ponto de vista da linguística, se quisermos nos ater unicamente ao que existe no chamado “sistema” da língua, já existem muitos e bons argumentos para dizer que o português brasileiro é uma língua diferente do português europeu.
No plano fonético-fonológico, isto é, dos sons da língua, existem no português europeu duas vogais átonas (um “a” fechado e um “e” quase gutural) que são totalmente desconhecidas entre nós.
Para alguns fonologistas, isso por si só já bastaria para dizer que são duas línguas diferentes. Além disso, ocorrem no português europeu vários fenômenos fonéticos que também são desconhecidos por aqui.
Só para citar um deles: quando uma palavra termina em [s] e a seguinte começa em [s], esses dois [s] se fundem e viram uma consoante “chiada”, como a que aparece justamente na palavra “chiada”. Quando tomamos um avião da TAP, ouvimos as aeromoças (perdão, as “hospedeiras do ar”) dizer: “Apertem uxintux”, isto é, “apertem os cintos”.
Onde nós dizemos “seis, sete”, os portugueses dizem “saixete”. Outros diversos fenômenos dessa natureza tornam o português europeu mais difícil para nós do que o português brasileiro para os portugueses.
Em diversos aspectos fonéticos, a nossa língua é mais conservadora, preserva pronúncias que foram trazidas para cá nos primeiros séculos da invasão.
Existe uma diferença radical no grau de inteligibilidade dos falantes de cada “língua”: eles nos entendem bem, porque nossa pronúncia é mais clara, preserva praticamente cada sílaba, enquanto nós precisamos ficar muito atentos para entender o que eles dizem, com a queda sistemática das vogais átonas que fazem palavras de 4 sílabas para nós terem só 2 por lá: “interesse” versus “intres”.
Mas o que realmente distingue uma língua de outra é a gramática, ou seja, as regras que fazem a língua funcionar, as regras que permitem a combinação dos elementos na morfossintaxe.
E aí cada vez mais os linguistas brasileiros e estrangeiros vão descobrindo coisas que só existem deste lado de cá do Atlântico. Quer ver?
No português brasileiro, o verbo sozinho na 3a pessoa do singular serve como índice suficiente de indeterminação do sujeito.
Nós perguntamos tranquilamente: “Pode fumar aqui?” ou “Onde guarda esses livros?” ou “Como faz pro suflê não murchar?”. Isso porque nós estamos eliminando a voz média verbal (e você nem sabia que participava dessa extinção, não é?).
A voz média se constrói com o pronome “se”, de modo que, numa construção “clássica”, teríamos “pode-se fumar aqui?” / “onde se guardam os livros?” / “como se faz pro suflê não murchar?”.
Só que nós não falamos assim. Até para evitar a dor de cabeça da concordância maluca do tipo “onde se guardam os livros” (que não faz nenhum sentido para a nossa intuição linguística), nós simplesmente apagamos o “se” e criamos uma forma nova de indeterminação.
No português europeu, no entanto, uma pergunta do tipo “pode fumar aqui?” seria interpretada como “você pode fumar aqui?”, porque os portugueses quase sempre omitem o pronome “você”: o verbo para eles basta.
Por isso é que encontramos em Portugal anúncios que nos soam completamente estranhos: “Temos o que não encontra”, conforme vi numa loja na lindíssima cidade do Porto. Isso quer dizer: “Temos o que você não encontra [em outros lugares]”.
No português brasileiro, a presença do pronome-sujeito caminha rapidamente para se tornar obrigatória, como em inglês e francês.
Existe, portanto, uma mesma ordenação de palavras: “pode fumar aqui?”, mas uma interpretação muito diferente da parte dos falantes.
E é essa interpretação diferente, no plano da semântica e da pragmática, que nos permite (ou permitiria) dizer que são duas línguas diferentes.
Mas a coisa vai ainda mais longe. Para conservar a ordem das palavras como sujeito-verbo-complemento (SVC), que é a ordem básica do português brasileiro, nós estamos causando uma verdadeira revolução gramatical.
Um enunciado como: “Meu bebê está nascendo os dentes, será por isso que está irritadinho?”, é inconcebível em Portugal.
O verbo “nascer” é intransitivo por excelência: você não pode “nascer uma coisa”, uma coisa é que nasce. Mas toda e qualquer mãe (ou pai) brasileira diz com tranquilidade: “Meu bebê está nascendo os dentes”.
Ou seja, “os dentes” é complemento direto do verbo “nascer”. E toca os linguistas estrangeiros a ficar espantadíssimos! E o mesmo com o verbo “morrer”. Outro dia ouvi, caminhando pela Universidade de Brasília, uma jovem dizer: “A Priscila morreu o carro logo no primeiro dia que foi estrear a carteira de motorista”.
Esse mesmo fenômeno está presente em enunciados do tipo: “Meu computador acabou a bateria”, “esse quarto não bate sol”, “meu telefone quebrou a tela”, “essa rua passa ônibus pro centro” e milhões e milhões de outras. Todas consideradas “agramaticais” no português europeu.
É que nós, falantes do português brasileiro, somos praticantes inveterados da topicalização. Topicalizar um elemento da frase é trazer esse elemento para o início, a fim de dar destaque a ele.
Em lugar de dizer “estão nascendo os dentes do meu bebê”, eu trago o bebê para a frente (afinal, ele é a coisa mais importante do mundo!), apago a preposição e digo: “Meu bebê está nascendo os dentes”. Em vez de dizer “acabou a bateria do meu computador”, eu faço a mesma coisa: “meu computador acabou a bateria”.
A eliminação da voz média, as construções com tópico, as construções ergativas, a atribuição de acusatividade a verbos inacusativos, a atribuição de caso sujeito a locuções adverbiais, a reordenação das construções que indicam afetividade... tudo isso é coisa nossa, só nossa, não existe no português europeu.
É preciso então saber muita história da língua, muita teoria sintática, muita fonologia e muitas coisas mais antes de dar palpites infundados e dizer que os linguistas que, como eu, preferem reconhecer que se trata de duas línguas diferentes, estamos delirando ou vendo pelo em ovo.
Dizer que é tudo uma língua só é uma postura ideológica. Dizer que são duas línguas diferentes também é uma postura ideológica.
Mas essa, pelo menos, busca se apoiar em argumentos construídos com sólida base teórica e muita investigação.
E não nega seu caráter ideológico, como fazem há séculos os defensores de “uma língua só”, mergulhados em sua mentalidade colonizada e/ou colonizadora. Tá bom procê?