"A vida é de quem se atreve a viver".


Bagno: "Entre o “pobrema” vivo e saltitante e a mesóclise funesta e funerária, agarro o “pobrema” e saio lutando ao lado dele".
A origem do pobrema

Marcos Bagno -

Quando estudamos a história da língua portuguesa, encontramos muitíssimos exemplos de um fenômeno que os linguistas chamam de rotacismo, a troca de um L por um R na passagem do latim ao português:

            LATIM            PORTUGUÊS

            blandu-            brando
            clavu-              cravo
            flaccu-             fraco
            glute-              grude
            placere            prazer
            plaga               praga
            plicare              pregar
           
A mesma coisa aconteceu com palavras de outras origens, como o adjetivo branco, que nos veio do germânico blanck, ou armazém, que herdamos do árabe al-mahazan.

Essas mudanças se devem, sem dúvida, aos hábitos articulatórios dos habitantes originais da Galécia, a província romana onde surgiu a língua galega, derivada do latim, língua galega que, séculos depois, foi levada cada vez mais para o sul da faixa ocidental da Península Ibérica até receber o nome de “português”, e isso só lá pelo início do século 15... 

Essa tendência ao rotacismo, porém, não é exclusiva dos nossos mais remotos ancestrais galaicos.

A passagem de L para R também se verifica em diversas outras línguas mundo afora.

Por exemplo, a palavra último em napolitano é úrdemo. No dialeto romanesco (falado na região de Roma), alto se diz arto. Em romeno, o latim caelum- (“céu”) se tornou cer.

Nossos compatriotas menos sujeitos ao policiamento da norma-padrão veiculada pela escola tendem a prosseguir essa antiquíssima tendência rotacizante, porque eles obedecem com muito mais tranquilidade e naturalidade às forças de mudança que sempre estiveram e estão em ação na vida da língua.
Por isso eles dizem ingrês, praca, broco, grobo, crima etc. Aliás, é bom lembrar, Camões só escrevia ingrês, pruma, pubricar e frauta.

As formas com L, mais próximas do original latino, só foram oficializadas algum tempo depois que o grande poeta produziu seus monumentos literários.

As pessoas letradas costumam, por puro e simples preconceito (ou seja, por falta de informação histórica, já que a ignorância é a principal fonte do preconceito), zombar de quem diz ingrês, praca e grobo, gostam de rir dessas palavras, mas não riem quando elas mesmas dizem cravo, fraco, grude, prazer.

Um falante nativo de latim certamente acharia “feio” e “errado” falar desse jeito! Por que rir de praca e não rir de praça (do latim platea), se o fenômeno é o mesmo, o rotacismo? Pois é, né?

Aí você me pergunta: quem diz praca, ingrês e broco também diz “probrema”, não é? Não, não diz. A gente pode sair de gravador em punho sertão adentro tentando capturar essa pronúncia, mas ela não vai ocorrer.

Por quê?

Veja só essas palavras do espanhol: orquesta, propio. E essas, que são usadas correntemente em Portugal: rasto, registo.

Onde foi parar o segundo R dessas palavras? Ele foi parar lá onde também ficou o outro R do latim rostru-, que nos deu rosto, ou do latim cribru-, que nos deu crivo...

É muito comum que, na presença de dois sons semelhantes numa mesma palavra, um deles seja eliminado.

Esse fenômeno se chama dissimilação. Também pode acontecer que um dos sons seja trocado por outro: o latim liliu- deu lírio em português, assim como o italiano colonello deu coronel. Não é fantástico estudar essas coisas? Eu pelo menos acho.

Os falantes mais letrados também costumam se deixar levar pela dissimilação, que é uma tendência articulatória muito natural: quantos de nós não hesitamos na hora de falar coisas como prostrar, frustrar, encastrar e outras?
Então, onde nós esperaríamos “probrema”, o que escutamos mesmo é pobrema. O primeiro R foi eliminado, por dissimilação.

Tudo isso é para dizer o seguinte: não tem problema nenhum o presidente Lula dizer pobrema, a boa ciência linguística explica o fenômeno.

O verdadeiro problema é estarmos vivendo o desmonte histérico das nossas instituições democráticas, a destruição vingativa e rancorosa dos direitos da maioria, por obra e desgraça do que existe de mais abjeto, porco, imundo, corrupto, venal, sórdido e criminoso na sociedade brasileira.
 
Eu, por mim, entre o “pobrema” vivo e saltitante e a mesóclise funesta e funerária, agarro o “pobrema” e saio lutando ao lado dele, porque é assim que fala a imensa maioria do nosso povo, e o nosso povo não pode ser ainda mais subjugado e discriminado do que já é só porque não fala como os parasitas do poder acham que ele deveria falar!

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