"A vida é de quem se atreve a viver".


Marcos Bagno: "As línguas mudam, se transformam com o tempo, e é precisamente essa certeza que leva essas pessoas [puristas] a se desesperar e a querer interromper o que não pode ser interrompido".
O purista é um personagem trágico

Marcos Bagno (*)

Faz tempo que ouço falar dos vídeos que uma moça desvairada e ridícula publica querendo combater “erros de português”. Nunca me dei ao trabalho de assistir, porque não preciso ver para saber o que é.

Minha tese de doutoramento tratou precisamente dessas manifestações do que se chama há bom tempo de purismo linguístico.

Quem tiver interesse pode ler meu livro Dramática da língua portuguesa, que é o resultado da pesquisa que fiz em torno do que tenho chamado de “comandos paragramaticais”, um conjunto de manifestações do purismo linguístico (e, por tabela, do reacionarismo político) presentes na mídia contemporânea.

O uso da tecnologia mais avançada não elimina o que essas manifestações têm de velho, obsoleto, antiquado e bolorento.

O casal de linguistas ingleses James e Lesley Milroy chegaram mesmo a cunhar a expressão “tradição da queixa” para rotular esse fenômeno social velho como as pirâmides do Egito.

O purismo linguístico é uma ideologia sobre língua e, como toda ideologia, não tem nenhum outro fundamento a não ser as crenças infundadas de quem a defende.

O purista é um personagem trágico, porque já nasce fadado à derrota, destinado ao fracasso, à decepção, a ser subjugado pelas forças da realidade.

E isso por uma razão simplíssima: as línguas mudam, as línguas se transformam com o tempo, e é precisamente essa certeza que leva essas pessoas a se desesperar e a querer interromper o que não pode ser interrompido.

Elas querem fazer como o Josué da Bíblia: interromper o trajeto do sol, imobilizar a língua no tempo. Mas isso, como muitos dos relatos bíblicos, é um mito, um exemplo desse gênero de literatura fantástica que são os textos religiosos.

Ninguém nunca deteve o sol em sua marcha, ninguém nunca deterá a mudança linguística.

A única forma de deter a mudança linguística é eliminando todos os falantes de uma língua. E isso tem acontecido desde que o mundo é mundo.

O genocídio de populações inteiras também é um linguicídio, quando a língua falada por essa população dizimada deixa de existir.

A história da colonização do Brasil, de todo o continente americano, da Austrália e de outros lugares está repleta desses genocídios linguicidas.

Mas enquanto existirem pessoas falando uma língua, essa língua passará por mudanças. Porque, afinal de contas, não é “a língua que muda”: são os falantes, em interação social que, inconscientemente, vão transformando a língua que falam.

A língua que hoje a maioria da população brasileira fala se chama “português” por motivos exclusivamente não linguísticos.

Do ponto de vista histórico, no entanto, existe uma linha contínua, ininterrupta que, em retrospectiva temporal, parte de cada um de nós em 2017, chega até

Portugal no século 16, sobe rumo ao norte até a Galiza, envolve os romanos que, no primeiro século a.C., conquistaram a região, e se dirige até a Itália, onde surgiu a língua que tradicionalmente chamamos de latim.

Pois é: nós falamos latim, nada mais, nada menos. Falamos o latim que, levado para o noroeste da Península Ibérica, foi passando por lentas, graduais e ininterruptas transformações durante mais de dois mil anos até se tornar isso que falamos e ouvimos hoje em cada canto do Brasil.

Os nomes que essa mesma e única língua foi recebendo ao longo da história (latim, galego, português, português brasileiro etc.) refletem apenas as vicissitudes políticas, sociais, econômicas e culturais dos povos que a falam e a falaram.

Repito: do ponto de vista exclusivamente linguístico, é uma e a mesma língua.

Mas e o latim? Ah, o latim também só tem esse nome porque era falado no Latium, o Lácio, a região da Itália onde se localiza Roma.

De resto, o latim também pode ser reconduzido a uma língua ainda mais antiga, que os linguistas chamam de indo-europeu, e que deve ter sido falada inicialmente nas estepes da Ucrânia próximas ao Mar Negro por volta de 4.000 anos a.C.

Se formos levar esse raciocínio a ferro e fogo, a língua que falamos hoje no Brasil é, de fato, o indo-europeu que passou por milênios de transformações.

Aliás, não sou eu que digo isso: já no seu “Curso de linguística geral”, publicado em 1916, Ferdinand de Saussure teria escrito que uma altíssima porcentagem do que se chama “francês” (e, no nosso caso, “português”) é herança direta do indo-europeu.

O nosso pronome “tu” é igualzinho ao pronome “tu” do híndi, uma das línguas mais faladas na Índia, ela também descendente do antigo indo-europeu.

E você sabe como é que as línguas mudam? As línguas mudam por causa da variação.

Em todo e qualquer momento da história de uma língua existem formas que chamamos de variantes e que podem ser definidas como duas ou mais maneiras de dizer a mesma coisa.

Essas formas variantes entram em concorrência e, em geral, uma delas vence a disputa e se torna a forma mais empregada, enquanto a outra desaparece ou fica restrita a pequenas comunidades de falantes.

Mas logo a forma mais empregada também começa a sofrer concorrência de uma forma inovadora, e assim vai, enquanto tiver gente falando aquela língua.

Quando a gente lê a carta de Pero Vaz de Caminha, escrita em 1500, topa com um verbo escrito assim: “leixarei”.

Também na gramática de João de Barros, publicada em 1540, ele fala das coisas que os portugueses “leixarem” nas terras conquistadas.

Esse verbo “leixar” procede do verbo latino “laxare”. Ele é da mesma família de outras palavras que nós usamos com muita frequência, como “relaxar”, “laxante”, “laxismo” e “desleixo”.

Ora, com toda a certeza, já na época de Caminha e de Barros, algumas pessoas deviam pronunciar o verbo “leixar” como “deixar”, numa troca muito habitual de “l” por “d” e vice-versa, porque são duas consoantes muito aparentadas, pronunciadas em pontos muito próximos na boca.

A palavra latina “lingua”, por exemplo, era “dingua” no latim arcaico.

Com o passar do tempo, a concorrência entre “leixar” e “deixar” foi se acirrando, cada vez mais pessoas passaram a dizer “deixar” até que “leixar” simplesmente desapareceu do repertório dos falantes.

E a forma nova “deixar” também sofreu concorrência, porque a grande maioria de nós, brasileiros, pronuncia mesmo “dexar”, sem o “i” do ditongo (um processo chamado assimilação), enquanto os portugueses abriram o “e” do ditongo e pronunciam “dâixar” (um processo chamado dissimilação).

Mas o que é que estou dizendo? Nós, brasileiros, em situações de fala espontânea, dizemos “dexá”, por que o “r” dos infinitivos quase sempre é apagado na fala não monitorada (um processo chamado apócope), enquanto os portugueses inserem um “e” depois do “r” (“dâixare”), um processo chamado paragoge.

Mas nem sempre a forma antiga desaparece. O grupo consonantal “-ct-“ do latim se transformou em “-it-“ na história do português (e do espanhol, do catalão e do francês também, aliás).

Por isso é que temos “noite”, “oito”, “peito”, “leito” (do latim “nocte”, “octu”, “pectu”, “lectu”) entre tantas outras muitas palavras.

Curiosamente, algumas das palavras que desenvolveram esse “-it-“ perderam o “i”.

Assim, na fase antiga da língua, existiam “teito”, “luita” e “fruita”, devidamente documentadas em textos escritos.

As formas “teto”, “luta” e “fruta”, porém, foram ganhando terreno e assim acabaram por se firmar como as formas cultas dessas palavras.

Quando estive em Santiago de Compostela e um amigo me perguntou, em galego, se eu queria passear pelo “teito” da catedral, senti um arrepio de emoção percorrer todo o meu corpo: eu estava ouvindo ali, de viva voz, uma forma que não é mais usada em português há séculos!

Ninguém mais em português diz “teito”.

Pois bem, as formas “luita” e “fruita” não desapareceram totalmente, porque são empregadas em variedades rurais do português brasileiro, sobretudo no sertão nordestino.

Aliás, em Pernambuco, “fruita” é uma das muitas maneiras desrespeitosas de se referir ao homossexual masculino.

O que aconteceu foi a síncope do “i” do grupo “-it-“ dessas palavras.

É provável que, com a difusão dos meios de comunicação e o acesso à escolarização dos habitantes daquelas regiões, as formas antigas “luita” e “fruita” desapareçam.

A pessoa que acusa as outras de serem “burras” por usarem formas variantes dá prova absoluta de sua própria burrice.

Ela não tem ideia do que seja assimilação, dissimilação, apócope, paragoge, metátese, epêntese, sândi, suarabácti, síncope, aférese, haplologia, analogia, reanálise, gramaticalização e por aí vai.

É burra porque se mete a falar do que não sabe e, para piorar, além de burra é arrogante e preconceituosa, porque só vê as mudanças que ocorrem na fala das pessoas humildes, sem instrução formal, que costumam levar as mudanças da língua mais adiante e mais depressa do que as pessoas que se submetem ao policiamento da escrita e da escola.

Mas burrice e preconceito nasceram para andar juntos.

O purismo linguístico é uma das muitas faces do reacionarismo social, do conservadorismo político, da discriminação contra quem não pertence aos grupos dominantes.

E em tempos de fascismo disseminado, como o que estamos vivendo neste triste Brasil pós-golpe, não surpreende que ele volte a emergir com tanto vigor e com tanta sanha inquisitorial.

Felizmente, o purista, como eu já disse, é uma personagem trágica, fadada a nunca ter sucesso, derrotada de antemão.

Trágica, senão patética. Quando lemos as manifestações histéricas de puristas do passado e vemos que tudo o que eles combatiam pertence hoje à língua mais normal, escrita, literária, o máximo que podemos sentir por eles é pena.

Imaginem pessoas esbravejando contra o uso de “leixar” no século 16! De nada adiantou...

Assim como o fascista, que não aprende com as lições da história que os verdadeiros valores humanos, mais cedo ou mais tarde, acabam por vencer, o purista também se recusa a aceitar com tranquilidade a mudança na língua.

A única diferença é que o purista é inofensivo, mas o fascista, se puder, prende, tortura e mata. Com ele, todo cuidado é pouco e toda luita é mais que bem-vinda!
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(*) Marcos Bagno é professor do Instituto de Letras da Universidade de Brasília (UnB). Escritor, poeta e tradutor, já publicou mais de 30 livros, entre obras técnico-didáticas e literatura. Autor de Gramática Pedagógica do Português Brasileiro - Parábola Editorial, 2012 - www.parabolaeditorial.com.br

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